Cão que morde, não ladra.
Passagens sobre Cães
255 resultadosMandar é Respirar
Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.
A Árvore, a Estrela e a Pequena Mão
A pequena mão desenha a árvore
onde uma estrela se aninha para dormir.
Que dia será o de amanhã
no meio dos escombros onde o eco da súplica
enlouquece os cães famintos?
Quadro trágico para uma noite assim.
A pequena mão pega na borracha
e tenta apagar toda a dor do mundo
e acender com um novo traço
a claridade que resgata a alma.
A estrela acorda numa copa alta
e segue o caminho do que sabe
até encontrar a pequena mão
que tudo reinventa à medida do que somos.
Quando o encontro acontece
já não é noite nem dia, tempo infinito,
mas apenas um lugar onde o choro das crianças
de súbito se transforma em cântico.A pequena mão desenha tudo
o que falta desenhar para o sonho fazer sentido.
É uma mão frágil mas firme, apenas sábia,
e quando abre o livro azul das manhãs
é sempre para escrever as palavras
que o estrondo abafou nas cidades feridas.
A pequena mão desenha uma árvore,
uma estrela e uma mãe aflita.
Depois desenha uma linha de horizonte,
Vastos Campos
Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta. Nunca precisei de frequentar curandeiros da alma para saber como são vastos os campos do delírio. Agora vou sentar-me no jardim, estou cansado, setembro foi mês de venenosas claridades, mas esta noite, para minha alegria, a terra vai arder comigo. Até ao fim.
A cão mordido, todos (o) mordem.
O que conta não é necessariamente o tamanho do cão na briga – é o tamanho da luta no cão.
A ferida de cão cura-se com o pêlo do mesmo cão.
A Dependência é a Raiz de Todos os Males
O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele,
A Dádiva da Evidência de Si
Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos.
A Luta de Classes Acabou
A luta de classes esfumou-se, dissolveu-se, a democracia tem funcionado como um diluente social: toda a gente vive, compra e acorre ao hipermercado, ao balcão do bar e aos concertos pagos pelo município na praça central, e todos falam ao mesmo tempo, vozes que se misturam como nas tumultuosas reuniões no cine Tivoli evocadas pelo meu pai, já não se distingue o que está em cima do que está em baixo, está tudo enredado, confuso, e, porém, reina uma misteriosa ordem, eis a democracia. Mas, de súbito, desde há um par de anos, parece desenhar-se uma ordem mais explícita, menos insidiosa. A nova ordem é bem visível, com os níveis superior e inferior bem definidos: alguns transportam com orgulho sacos repletos de compras e cumprimentam sorridentes os vizinhos à porta do centro comercial, outros remexem nos contentores onde os empregados do hipermercado lançaram as embalagens de carne fora de prazo, a fruta e as verduras pisadas, os pastéis industriais caducados. Lutam entre si por esses alimentos.
(…) Trivial, a luta de classes? Então não era isso que determinava, que impregnava e condicionava tudo? O grande motor da história universal? Não era nisso que acreditavam o meu pai e os seus camaradas,
Biografia Entre o olhar suspeitoso da tia E o olhar confiante do cão O menino inventava a poesia…
Crónica de Natal
Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu – eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!» Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do trato social através dos seus conflitos próprios,
A língua do cão é benta e a do gato sebenta.
Soneto a Vermeer
De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amareladode sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com os seus olhos azuis, o tempo acalma.A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca
contra o corpo de cão, negro, da máquina:a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.
As portas que conduzem ao êxito literário têm cães de guarda: os editores, que são escritores fracassados.
Era um homem com um problema momentâneo de auto-estima e que tinha um cão que tratava como a uma pessoa. O mundo estava cheio de homens assim, pelo que não seria mais um a perturbar o equilíbrio cósmico.
Quando de noite ele me chamar para a atração do inferno, irei. Desço como um gato pelos telhados. Ninguém sabe, ninguém vê. Só os cães ladram pressentindo o sobrenatural.
O Prazer é Silencioso
Ao contrário da ideia assente
A palavra não é criadora de um mundo;
O homem fala como o cão ladra
Para exprimir raiva, ou medo.O prazer é silencioso,
Tal como o é o estado de felicidade.
O cão de perdiz tem faro.
Os olhos do meu cão enternecem-me. Em que rosto humano, num outro mundo, vi eu já estes olhos de veludo doirado, de cantos ligeiramente macerados, com este mesmo olhar pueril e grave, entre interrogativo e ansioso?