Há Que Instruir o Povo, mas…
Há que instruir o povo. Afigura-se-nos, porém, que é presunção demasiada, em nosso parecer, pelo menos, pensar que o povo sem mais nem para quê vai ouvir-nos de boca aberta. Porque o povo não é um rebanho de carneiros! Mais ainda: estamos convencidos de que compreende, ou pelo menos pressente, que nós, os senhores, tão-pouco sabemos nada, ainda que nos apresentemos como mestres, e que precisamos que alguém nos ensine primeiro; eis por que efectivamente não respeita a nossa ciência, ou pelo menos não a ama.
Quem tiver tido algum comĂ©rcio com o povo poderá verificar por si prĂłprio esta impressĂŁo. Para que o povo nos ouça, efectivamente, de boca aberta, há que começar por merecĂŞ-lo, isto Ă©, por ganhar a sua confiança, o seu respeito e essa nossa ideia de que basta usarmos da palavra para ele nos ouvir boquiaberto… nĂŁo Ă© a mais indicada para granjearmos a sua confiança e muito menos a sua estima. Mas o povo compreende-o. NĂŁo há nada que o homem entenda melhor que o tom com que nos dirigimos a ele, o sentimento que ele nos inspira. A ingĂ©nua crença na nossa incomensurável sabedoria relativamente ao povo antolha-se-lhe grotesca e em muitas ocasiões considera-a mesmo ofensiva.
Passagens sobre Bocas
621 resultadosHomo Infimus
Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua prĂłpria boca te maldiz!O nĂ´umeno e o fenĂ´meno, o alfa e o omega
Amarguram-te. HebdĂ´madas hostis
Passam… Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
ExcrescĂŞncia de terra singular.Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfĂcie do planeta,
Tu sĂł tens um direito: – o de chorar!
A boca governa-se pela bolsa.
XVIII
Dormes… Mas que sussurro a umedecida
Terra desperta? Que rumor enleva
As estrelas, que no alto a Noite leva
Presas, luzindo, Ă tĂşnica estendida?SĂŁo meus versos! Palpita a minha vida
Neles, falenas que a saudade eleva
De meu seio, e que vĂŁo, rompendo a treva,
Encher teus sonhos, pomba adormecida!Dormes, com os seios nus, no travesseiro
Solto o cabelo negro… e ei-los, correndo,
Doudejantes, sutis, teu corpo inteiroBeijam-te a boca tépida e macia,
Sobem, descem, teu hálito sorvendo
Por que surge tĂŁo cedo a luz do dia?!
Para o Meu Coração…
Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma.És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas Ă s corolas.
Minas o horizonte com a tua ausĂŞncia.
Eternamente em fuga como a onda.Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e Ă s vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.
Nas tardes de chuva, bordando com um grupo de amigas na varanda das begĂ´nias, perdia o fio da conversa e uma lágrima de saudade lhe salgava o cĂ©u da boca quando via as faixas de terra Ăşmida e os montĂculos de barro construĂdos pelas minhocas no jardim.
Clareira
Quando depois do amor
ela está estendida
para o céu
e as pernas
reluzeme a boca
tem o ar
de uma bicicleta junto
a uma macieirae seu corpo
se move
e os seios
estĂŁo no tanque
dentro da sombratomo-a
mil vezes
e lhe sopro na boca
o ar
que esfriou na distância
que separa
a fruteira de cristal
dos lábios
que a moldaram
O Misantropo
A boca, Ă s vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludĂbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo Ă socapa!Porque, desde que esse Ăłdio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
PerfĂdias sĂł em cada humano seio?Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspĂcuo e melhor, sĂł quando odeio?
E Ă© preciso odiar para ser justo?!
Das Vozes que Te Embalavam
Das vozes que te embalavam
a esperança de menina
moça
guardaste mais, de tanto repisadas,
as perfumadas lições
da nobre arte de agarrar um homem.
De como te fazeres desejada,
amada porventura,
tudo aprendeste: os gestos, os meneios,
a graça de sorrir e de calar.
Hoje tens o teu homem
disposto a desdobrar-se em pĂŁo e vinho
para apagar tua fome.
por isso, que lhe hás de dar:
o trigo de tua pele, as uvas de tua boca?
Se sem a ponte do amor, tua lavoura Ă© tĂŁo pouca…
Acorda: onde estĂŁo as vozes que te ensinaram a amar?
A Noite na Ilha
Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raĂzes que se tocam.0 teu sono separou-se
talvez do meu
e andava Ă minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda nĂŁo existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
— pão, vinho, amor e cólera —
te dou Ă s mĂŁos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
Eu
Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu nĂŁo era
Aquela que em meus versos descrevera
TĂŁo clara como a fonte e como o dia.Mas que eu nĂŁo era Eu nĂŁo o sabia
E, mesmo que o soubesse, nĂŁo o dissera…
Olhos fitos em rĂştila quimera
Andava atrás de mim…e nĂŁo me via!Andava a procurar-me — pobre louca!
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
Sacrilégio
Como a alma pura, que teu corpo encerra,
Podes, tĂŁo bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bela demais para no cĂ©u viver.Amo-te assim! – exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
Oferecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!Amo-te assim, Ă fronte conservando
A parra e o acanto, sob o alvor do véu,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céu.Ainda quando, abraçados, nos enleva
O amor em que me abraso e em que te abrasas,
Vejo o teu resplandor arder na treva
E ouço a palpitação das tuas asas.Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
Os céus se estendem pelo teu olhar,
E, dentro dele, os serafins errantes
Passam nos raios claros do luar:Em vĂŁo! – descerras Ăşmidos, e cheios
De promessas, os lábios sensuais,
E, Ă flor do peito, empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhais.Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca.
TitĂŁs Negros
Hirtas de Dor, nos áridos desertos
Formidáveis fantasmas das Legendas,
Marcham além, sinistras e tremendas,
As caravanas, dentre os cĂ©us abertos…Negros e nus, negros TitĂŁs, cobertos
Das bocas vis das chagas vis e horrendas,
Marcham, caminham por estranhas sendas,
Passos vagos, sonâmbulos, incertos…Passos incertos e os olhares tredos,
Na convulsão de trágicos segredos,
De agonias mortais, febres vorazes…TĂŞm o aspecto fatal das feras bravas
E o rir pungente das legiões escravas,
De dantescos e torvos Satanases!…
O Livro da Vida
Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia…
— Lia o «Livro da Vida» — herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarĂŁo da primeira alvorada.Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.Passa o Estio, a cantar; acumulam-se Invernos;
E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça,—
A ler e a meditar postulados eternos,
Sem um fanal que o seu espĂrito esclareça!Cada página abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Ele tenta arrancar da folha percorrida,
Como de mina obscura a pedra refulgente.Mas o tempo caminha; os anos vĂŁo correndo;
Passam as gerações; tudo Ă© pĂł, tudo Ă© vĂŁo…
E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo!
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,
Nem o humano sofrer,
Cuidado!
Ă“ namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!Desperta os ninhos vosso passo… E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se Ă© o vosso beijo que gorjeia,
se sĂŁo as aves que se estĂŁo beijando…Mais cuidado! NĂŁo vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem nunca ver!Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!
Mais Beijos
Devagar…
outro beijo… ou ainda…
O teu olhar, misterioso e lento,
veio desgrenhar
a cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!Mais beijos!…
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca
e domine a tua vida!Sim, amor..
deixa que se alongue mais
este momento breve!…
— que o meu desejo subindo
solte a rubra asa
e nos leve!
Quanto, Quanto me Queres?
Quanto, quanto me queres? – perguntaste
Olhando para mim mas distrahida;
E quando nos meus olhos te encontraste,
Eu vi nos teus a luz da minha vida.Nas tuas mĂŁos, as minhas, apertaste.
Olhando para mim como vencida,
«…quanto, quanto…» – de novo murmuraste
E a tua boca deu-se-me rendida!Os nossos beijos longos e anciosos,
Trocavam-se frementes! – Ah! ninguem
Sabe beijar melhor que os amorosos!Quanto te quero?! – Eu posso lá dizer!…
– Um grande amĂ´r sĂł se avalia bem
Depois de se perder.
Tinha de Fachos Mil a Noite Ornado
1
Tinha de fachos mil a noite ornado
A argentada Princesa:
De amor, graça e beleza
O campo etéreo Vénus povoado.2
A Terra, com perfume precioso
Em torno recendia;
E plácido dormia
Sobre a dourada areia o pego undoso;3
Quando veio roubar a formosura
De tudo o que Ă© criado,
Márcia, fiel traslado
Da beleza do Céu, sublime e pura;4
Com LĂrios, que estendeu, vestiu ufana
A forma divinal;
Em aceso coral
Tingiu, sorrindo, a boca soberana,5
As madeixas tomou das veias de ouro,
Nos olhos pĂ´s safiras,
Que das setas, que atiras,
SĂŁo, fero Amor, o mais caudal tesouro.6
Todos seus dons lhe pôs o Céu no peito;
Como orna o Régio Sposo,
C’o enfeite mais custoso,
A Princesa, a quem rende a alma, sujeito.7
Eu vi afadigados os Amores,
E as Graças, que cantavam
Enquanto se moldavam
Seus graciosos gestos vencedores.8
Das Sereias o canto deleitoso
Lhe nasceu sem estudo;
Ao Mundo Esconde O Sol Seus Resplendores
Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mĂŁo da Noite embrulha os horizontes;
nĂŁo cantam aves, nĂŁo murmuram fontes,
nĂŁo fala PĂŁ na boca dos pastores.Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.VĂŞnus, Palas e as filhas da MemĂłria,
deixando os grandes templos esquecidos,
nĂŁo se lembram de altares nem de glĂłria.Andam os elementos confundidos:
ah, JĂ´nia, JĂ´nia, dia de vitĂłria
sempre o mais triste foi para os vencidos!
Bocas cheias sĂŁo bocas silenciosas.