Do Vale à Montanha
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte, cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
Passagens sobre Casas
877 resultadosA casa do mentiroso está em cinzas e ninguém acredita que ela ardesse.
Ode aos Natais Esquecidos
Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pêlos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
A Soma e Substância de Toda a Filosofia
Se te casas, arrependes-te; se não te casa, arrependes-te também; cases-te ou não te cases, arrependes-te sempre. Ri-te das loucuras do mundo e irás arrepender-te; chora sobre elas, e arrependes-te também; ri-te das loucuras do mundo ou chora sobre elas, e de ambas as coisas te arrependes; quer te rias das loucuras do mundo, quer chores sobre elas irás sempre arrepender-te. Acredita numa mulher, e irás arrepender-te, não acredites nela e arrependes-te também; acredites ou não numa mulher, arrependes-te de ambas as coisas. Enforca-te, e arrependes-te; não te enforques, e na mesma te arrependes. É esta, meus senhores, a soma e substância de toda a filosofia.
Uma acumulação de factos não faz uma ciência, tal como um conjunto de pedras não faz uma casa.
O amor é meramente uma loucura e, na minha opinião, merece uma casa escura e um chicote, como os loucos; a razão pela qual os amantes não são assim punidos curados é que a loucura é tão comum que os homens do chicote amam também.
Um homem percorre o mundo inteiro em busca daquilo que precisa e volta a casa para encontrá-lo.
Vi Jesus Cristo Descer à Terra
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
Natal
Turvou-se de penumbra o dia cedo;
Nem o sol apertou no meu beiral!
Que longas horas de Jesus! Natal…
E o cepo a arder nas cinzas do brasedo…E o lar da casa, os corações aos dobres,
É um painel a fogo em seu costume!
Que lindos versos bíblicos, ao lume,
Plo doce Príncipe cristão dos pobres!Fulvas figuras pra esculpir em barro:
À luz da lenha, em rubro tom bizarro,
Sou em Presépio com meus pais e irmãosE junto às brasas, os meus olhos postos
Nesta evangélica expressão de rostos,
Ergo em graças a Deus as minhas mãos.
Como Amo
Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se sempre eu soube usar a palavra — embora às vezes gaguejando — então sou uma criminosa se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim. O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto: amor pelos outros?
Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo.
Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a lua cheia — sou muito mais lunar que solar. É uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever: eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo?
A caridade começa em casa, mas não termina lá.
Os Amantes
Amor, é falso o que dizes;
Teu bom rosto é contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;O teu meu é mel azedo,
Não creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vão rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.Fartei-te assaz a vontade;
Em vãos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui não tiras nada.Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;
A homem calado e mulher barbada, em tua casa não dês pousada.
Casa de ferreiro colher de pau ? Isso justificaria o tanto de nutricionista engordando, o tanto de manicure que roí unhas e o monte de medico fumando ?
Casa, e verás que mal dormirás.
Romance de Dubrovnik
São estas casas de cinza
De cinza petrificada
É como se aqui a vida
tivesse jogado às cartas
e só a morte saíra
ganhando em cada jogada
É esta rua comprida
mas que se chama Platza
(embora em eslava grafia
se escreva apenas Placa)
e que na Ragusa antiga
já dois mundos separava
De um lado terra latina
e do outro terra bárbara
São as verdes gelosias
são as muralhas douradas
a segredarem que a vida
se inda quisesse ganhava
É agora ao meio-dia
a Porta Pile empilhada
E são cachos de turistas
trepando pelas muralhas
tirando fotografias
contudo não vendo nada
São fileiras de boutiques
São cafés sob as arcadas
É tudo a fingir que a vida
não se dá por derrotada
É no porto a maresia
quando mais avança a tarde
incrustada em cada esquina
suspensa de cada iate
Mas das naves bizantinas
é que ela sente saudades
e das galeras esguias
que Veneza lhe enviava
se bem que tal nostalgia
inda hoje a sobressalte
Nenhum sabor tem a vida
se a morte a não acicata
E são argolas vazias
as que há no porto à entrada
e de onde outrora pendiam
correntes sempre de guarda
Quem aliás adivinha
as marítimas estradas
que deste porto saíam
que neste nó se cruzavam
Com certeza agora vivem
na tinta azul de outros mapas
Ou permanecem cativas
Ou ficaram bloqueadas
São em redor tantas ilhas
tanta rocha tanta escarpa
tantas flutuantes ravinas
Mas quando a noite se abate
não são mais do que faíscas
no mar de prata lavrada
E já a Lua surgia
na sua rica dalmática
Nem mais a preceito vinha
do que no céu da Dalmácia
Será que o fulgor da vida
vem da morte iluminada
Subo ao monte Zarkovica
(Na língua serbo-croata
deve ler-se Djarkovitza)
e à sombra desta latada
bebo um copo de mastika
olho de novo a cidade
Ó memória empedernida
de uma divina morada
Ó ferradura de cinza
de algum cavalo com asas
Ó mediterrânea figa
mais propriamente adriática
que foi feita por Posídon
e no litoral deixada
O que a morte à vida ensina
através dos deuses passa
Mas não é só nas ruínas
que fica a sua pegada
A casa que lhe sobra uma quarta é uma casa farta.
A escrita é uma casa que eu visito, mas onde não quero morar. O que me instiga são as outras línguas e linguagens, sabedorias que ganhamos apenas se de nós mesmos nos soubermos apagar.
O homem é um bocado como o gato, fica preso às casas porque nelas se passaram histórias, e a casa é o guardião de todas essas histórias, problemas, alegrias, etc.
A Sabedoria na Riqueza
Haverá dúvidas de que um homem de sabedoria tem mais condições para desenvolver as suas qualidades no meio das riquezas do que na pobreza? Na pobreza, só há um género de virtude: não se curvar nem se abater; na riqueza, a temperança, a liberalidade, a frugalidade, a ordem e a magnificência têm um campo aberto. O sábio não se desprezará a si próprio, mesmo que seja de baixa estatura; desejará porém ser elegante. Com um corpo frágil ou com um olho a menos, ele sentir-se-á bem, mas preferirá, contudo, que o seu corpo seja robusto, apesar de saber que, em si, há algo mais forte. Ele tolerará uma saúde má, procurando ter uma saúde boa. De facto, algumas coisas, ainda que sejam pequenas em relação ao conjunto, quando são aproveitadas sem que se arruíne o bem principal, contribuem para a perpétua alegria, que nasce da virtude: as riquezas causam ao sábio a mesma impressão e o mesmo gáudio que causa o vento favorável ao navegador, ou que um belo dia causa num lugar enregelado pelo frio do Inverno. Quem, entre os sábios (falo dos nossos, aqueles para os quais a virtude é um bem) nega que mesmo estas coisas, que consideramos indiferentes,