Enterro de Luxo
Lá vai o enterro de luxo
puxado por sete cavalos
lá vai a rosa de plástico
na lapela do cadáver.Lá vai o defunto imberbe
boiando em madeira nobre
lá vai a lĂngua bilingue
com seu sotaque podre.Lá vai o queixo amarrado
lá vai a gravata oblĂqua
montada na escorreguenta
garupa da metafĂsica.Lá vai o enterro de luxo
lá vai a conta bancária
lá vai a calva engomada
lá vai o ouro da cárie.Lá vai o enterro de luxo
levado por ventos negros
lá vão os pendões de luto
com seus narizes alegres.Lá vai o enterro de luxo
lá vai o perfil de árabe
tangido pra correnteza
volĂşvel da eternidade.
Passagens sobre Defuntos
32 resultadosBrincadeira de homem cheira a defunto.
O jornal exerce todas as funções do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o pai da mentira, mas o pai da discórdia.
O Deus-Verme
Factor universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – Ă© o seu nome obscuro de batismo.Jamais emprega o acĂ©rrimo exorcismo
Em sua diária ocupação fúnerea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrĂłpicos, rĂłi vĂsceras magras
E dos defuntos novos incha a mĂŁo…Ah! Para ele Ă© que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
O Louvor do Jornal
Nas nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais Ă© alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se conquistarem essas sete linhas benditas, os homens praticam todas as acções – mesmo as boas.
(…) Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam.
(…) O jornal exerce todas as funções do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e Ă© nĂŁo sĂł o pai da mentira, mas o pai da discĂłrdia.
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…
Que importa o mundo e seus orgulhos vĂŁos?…
O mundo, Amor?… As nossas bocas juntas!…
Elegia
Vae em seis mezes que deixei a minha terra
E tu ficaste lá, mettida n’uma serra,
Boa velhinha! que eras mais uma criança…
Mas, tĂŁo longe de ti, n’este Payz de França,
Onde mal viste, entĂŁo, que eu viesse parar,
Vejo-te, quanta vez! por esta sala a andar…
Bates. Entreabres de mansinho a minha porta.
Virás tratar de mim, ainda depois de morta?
Vens de tĂŁo longe! E fazes, sĂł, essa jornada!
Ajuda-te o bordĂŁo que te empresta uma fada.
Altas horas, emquanto o bom coveiro dorme,
Escapas-teĂŁda cova e vens, Bondade enorme!
Atravez do MarĂŁo que a lua-cheia banha,
Atravessas, sorrindo, a mysteriosa Hespanha,
Perguntas ao pastor que anda guardando o gado,
(E as fontes cantam e o cĂ©u Ă© todo estrellado…)
Para que banda fica a França, e elle, a apontar,
Diz: «Vá seguindo sempre a minha estrella, no Ar!»
E ha-de ficar scismando, ao ver-te assim, velhinha,
Que Ă©s tu a Virgem disfarçada em probrezinha…
Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os céus,
Deixando atraz de ti, os negros Pyrineus,
Sob os quaes rola a humanidade,
Neste Dia Meu Amor
Neste dia meu amor
os meus dedos sĂŁo o candelabro que te ilumina
o Ăşnico existente.E o homem
sua esfera perdida em mĂŁos alheias
Ă© o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o lĂmpido cristal corrompido
o defunto.E este patĂbulo onde o prĂłprio carrasco se enforcará
eu o digo
será erguido como sĂmbolo de todos os homens.Aqui a hora vai sendo longĂnqua meu amor e solene.
O caminho Ă© grande o tempo tĂŁo pouco
tenhamos muita esperança e muito ódio
e vĂtreas flores a ornar o teu cabelo
porque serei o homem para as transportar
e tu a última mulher que as aceitará.E enquanto assim for
erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas
a nebulosa
que dizem estar a milhões de anos-luz
mas nĂŁo acreditemos bem o sabes
porque em verdade a temos em nossas prĂłprias mĂŁos
oculta para a contemplarmos agora.
Os Sinos
1
Os sinos tocam a noivado,
No Ar lavado!
Os sinos tocam, no Ar lavado,
A noivado!Que linda criança que assoma na rua!
Que linda, a andar!
Em extasi, o povo commenta que Ă© a Lua,
Que vem a andar…Tambem, algum dia, o povo na rua,
Quando eu cazar,
Ao ver minha noiva, dirá que é a Lua
Que vae cazar…2
E o sino toca a baptizado
Que lindo fado?
E o sino toca um lindo fado,
A baptizado!E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o lavar,
E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o sujar.Ă“ boa madrinha, que o enxugas de leve,
Tem dĂł d’esses gritos! Comprehende esses ais:
Antes o enxugue a Velha! antes Deus t’o leve!
NĂŁo soffre mais…3
Os sinos dobram por anjinho,
Coitadinho!
Os sinos dobram, coitadinho…
Pelo anjinho!Que aceiada que vae p’ra cova!
Olhae! olhae!
Sapatinhos de sola nova,
Olhae!
Soneto XXX
Quando Ă s vezes a mi, por mi pergunto,
Quem fui responde que me nĂŁo conhece
Com nĂŁo ser, de quem sou me desconhece,
E tem-me por defunto, o já defunto.Ele chora-me a mi, por ele ajunto
Com ele minhas lágrimas, e crece
Ua com outra dor, pois se oferece
Chorar quem já fui, e quem sou, junto.Choro porque o não vejo qual o via,
Ele porque me vĂŞ, qual me vĂŞ chora,
De mim, e dele, só lágrimas há.Espero por um dia, cada dia,
Que ou acabe de ser quem sou agora,
Ou acabe o lembrar-me quem fui já.
As MĂŁes
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terĂŁo morrido. Passaram o verĂŁo todo a transformar a luz em canto – nĂŁo sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, sĂŁo aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem ĂłrfĂŁs. NĂŁo as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estĂŁo em toda a parte onde nasça o sol: em CĂłria ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas sĂŁo as MĂŁes. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas sĂŁo as MĂŁes. A tua; a minha, se nĂŁo tivera morrido tĂŁo cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estĂŁo aĂ desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o nĂŁo forem, sĂŁo pelo menos incorruptĂveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mĂŁos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Ă€s vezes encostam-se Ă cal dos muros a ver passar os dias,
Certa Velhinha
1
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que triste velhinha que vae a passar!
NĂŁo leva candeia; hoje, o cĂ©u nĂŁo tem luzes…
Cautella, velhinha, não vás tropeçar!Os ventos entoam cantigas funestas,
Relampagos tingem de vermelho o Azul!
Aonde irá ella, n’uma noite d’estas,
Com vento da Barra puxado do sul?Aonde irá ella, pastores! boieiras!
Aonde irá ella, n’uma noite assim?
Se for un phantasma, fazei-lhe fogueiras,
Se for uma bruxa, queimae-lhe alecrim!Contava-me aquella que a tumba já cerra,
Que Nossa Senhora, quando a chama alguem,
Escolhe estas noites p’ra descer á Terra,
Porque em noites d’estas nĂŁo anda ninguem…AlĂ©m, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que linda velhinha que vem a passar!
E que olhos aquelles que parecem luzes!
Quaes velas accezas que a vĂŞm a guiar…Que pobre capinha que leva de rastros,
TĂŁo velha, tĂŁo rĂ´ta! Que triste viuvez!
Mas se lhe dá vento, meu Deus! tantos astros!
É o cĂ©u estrellado vestido do envez…Seu alvo cabello, molhado das chuvas,
Parece uma vinha de luar em flor…