O que Distingue um Amigo Verdadeiro
Não se pode ter muitos amigos. Mesmo que se queira, mesmo que se conheçam pessoas de quem apetece ser amiga, não se pode ter muitos amigos. Ou melhor: nunca se pode ser bom amigo de muitas pessoas. Ou melhor: amigo. A preocupação da alma e a ocupação do espaço, o tempo que se pode passar e a atenção que se pode dar — todas estas coisas são finitas e têm de ser partilhadas. Não chegam para mais de um, dois, três, quatro, cinco amigos. É preciso saber partilhar o que temos com eles e não se pode dividir uma coisa já de si pequena (nós) por muitas pessoas.
Os amigos, como acontece com os amantes, também têm de ser escolhidos. Pode custar-nos não ter tempo nem vida para se ser amigo de alguém de quem se gosta, mas esse é um dos custos da amizade. O que é bom sai caro. A tendência automática é para ter um máximo de amigos ou mesmo ser amigo de toda a gente. Trata-se de uma espécie de promiscuidade, para não dizer a pior. Não se pode ser amigo de todas as pessoas de que se gosta. Às vezes, para se ser amigo de alguém,
Passagens sobre Espaço
513 resultadosMinha Mãe, Minha Mãe!
Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!…
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas…
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.
Uma pessoa fixada no presente, sem atender ao passado e ao futuro, fica naquela situação triste em que ficaram os gregos que nunca se livraram da presença do tempo e do espaço.
A Europa como um Novo Império Germânico
Uma vez mais. Sou um europeu céptico que aprendeu tudo do seu cepticismo com uma professora chamada Europa. Não falando da questão do «ressentimento histórico», a que sou especialmente sensível, mas que, de todo o modo, é ultrapassável, rejeito a denominada «construção europeia» por aquilo que vejo estar a ser a constituição premeditada de um novo «sacro império germânico», com objectivos hegemónicos que só nos parecem diferentes dos do passado porque tiveram a habilidade de apresentar-se disfarçados sob roupagens de uma falsa consensualidade que finge ignorar as contradições subjacentes, as que constituem, queiramo-lo ou não, a trama em que se moveram e continuam a mover-se as raízes históricas das diversas nações da Europa. A União Europeia parece não querer compreender o que se está a passar na ex-União Soviética, nem sequer, apesar de tão à vista dos seus míopes olhos, nos Balcãs, para não falar do que irá passar-se amanhã em África, espaço já anunciado dos grandes conflitos do século XXI, se uma oportuna estratégia de hegemonias partilhadas não instaurar ali um colonialismo de novo tipo… A questão política principal do nosso tempo deveria ser o respeito pelas nações e a dignificação de todas as minorias étnicas, como meio de prevenir os nacionalismos xenófobos,
Dia
De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.E flutuo, já sem mim, pura existência.
Tradução de Luis Pignatelli
Uma vida constantemente atarefada não é uma vida plena. Há sempre algo errado na vida totalmente destituída de espaço para folga. Ter momentos de folga, isto é, de calma e tranquilidade, mesmo em meio a muitos afazeres – este é o verdadeiro modo de viver do ser humano.
O eterno silêncio desses espaços infinitos me espanta.
Os Deuses Reclinados
… Por todos os lados as estátuas de Buda, de Lorde Buda… As severas, verticais, carcomidas estátuas, com um dourado de resplendor animal, com uma dissolução como se o ar as desgastasse… Crescem-lhes nas faces, nas pregas das túnicas, nos cotovelos, nos umbigos, na boca e no sorriso pequenas máculas: fungos, porosidades, vestígios excrementícios da selva… Ou então as jacentes, as imensas jacentes, as estátuas de quarenta metros de pedra, de granito areento, pálidas, estendidas entre as sussurrantes frondes, inesperadas, surgindo de qualquer canto da selva, de qualquer plataforma circundante… Adormecidas ou não adormecidas, estão ali há cem anos, mil anos, mil vezes mil anos… Mas são suaves, com uma conhecida ambiguidade ultraterrena, aspirando a ficar e a ir-se embora… E aquele sorriso de suavíssima pedra, aquela majestade imponderável, mas feita de pedra dura, perpétua, para quem sorriem, para quem, sobre a terra sangrenta?… Passaram as camponesas que fugiam, os homens do incêndio, os guerreiros mascarados, os falsos sacerdotes, os turistas devoradores…
E manteve-se no seu lugar a estátua, a imensa pedra com joelhos, com pregas na túnica de pedra, com o olhar perdido e não obstante existente, inteiramente inumana e de alguma forma também humana, de alguma forma ou de alguma contradição estatuária,
Seleccionei para Ti
Seleccionei para ti
esta manhã de setembro
à margem dela
trabalho
para que
em canto e glória
sejas o centro unitário
no corpo dessa elegia
relacionei coisas miúdas
que possam complementar
o equilíbrio das formas
que te transitam eleita
na exaltação de meu sonho
e dentro desse equilíbrio
um núcleo de resistência
feito uma flor
uma fonte
que se iluminam feridas
de uma incidência de luz
o pouso breve de um pássaro
que em vigilância
nos olhos
preserva o voo completo
a música radical
do teu contexto moreno
a fala que não se escuta
na fundação dos abraços
evocação do momento
que defrontou
por acaso
a minha
e a tua vida
erguido o painel de espaço
és madrugada no dia
e retomada no tempo
és unidade centrada
compondo a mesma harmonia
assim usei tua ausência
num pressuposto de esquema
buscando tua presença
sobre alicerces de um poema
Stella
Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.Tíbio clarão já cora
A tela do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o úmido seio?Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria,
Virá do roxo oriente.Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera
Em lágrimas a pares,Do amor silencioso,
Místico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do etéreo gozo,De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.A virgem da manhã
Já todo o céu domina…
Raiva tampa o espaço do medo, assim como do medo raiva vem.
Manhã de Inverno
Coroada de névoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de sono e de preguiça,
Nos olhos da fantástica indolente.Névoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capelas, lágrimas mais puras.A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras úmidas da chuva;
Erma de flores, curva a planta o colo,
E o chão recebe o pranto da viúva.Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas trêmulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua história escreve.Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
As névoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o vale;
Já se vão descobrindo os horizontes.Sobe de todo o pano; eis aparece
Da natureza o esplêndido cenário;
Muitos dos debates que atravessam hoje o nosso espaço público são curiosos. Por vezes eles resvalam para a agressão. Deixamos de discutir ideias para atacar pessoas. A necessidade de ter razão, de ganhar a todo o custo, atropela os deveres do civismo que é uma das razões de estarmos aqui. Os debates deveriam servir para criarmos colectivamente conceitos produtivos, criarmos ideias que sejam construtoras.
É preciso esquecer para viver; a vida é esquecimento; cumpre abrir espaço para o que está por vir.
A Moda
As variações da sensibilidade sob a influência das modificações do meio, das necessidades, das preocupações, etc., criam um espírito público que varia de uma geração para outra e mesmo muitas vezes no espaço de uma geração. Esse espírito publico, rapidamente dilatado por contacto mental, determina o que se chama a moda. Ela é um possante factor de propagação da maior parte dos elementos da vida social, das nossas opiniões e das nossas crenças.
Não é só o vestuário que se submete às suas vontades. O teatro, a literatura, a política, a arte, as próprias idéias científicas lhe obedecem, e é por isso que certas obras apresentam um fundo de semelhança que permite falar do estilo de uma época.
Em virtude da sua acção inconsciente, submetemo-nos à moda sem que o percebamos. Os espíritos mais independentes a ela não se podem subtrair. São muito raros os artistas, os escritores que ousam produzir uma obra muito diferente das ideias do dia.
A influência da moda é tão pujante que ela obriga-nos, por vezes, a admirar coisas sem interesse e que parecerão mesmo de uma fealdade extrema, alguns anos mais tarde. O que nos impressiona numa obra de arte é muito raramente a obra em si mesma,
O Albatroz
Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num vôo triunfal, numa carreira audaz.Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!…
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!Tradução de Delfim Guimarães
A Nossa Inteligência as Está Vendo
A nossa inteligência as está vendo
quando, da luz da sua rodeadas,
criam a brisa pelo movimento
com que entram para o espaço das palavras.
Por ora irem mensura ainda o tempo
de aparecerem zonas sombreadas
conforme vinca músculos o lento
vaivém de luzes que organiza a marcha.
Mas caminham de fora para dentro.
Dentro de brisas diáfanas
onde, enigmático, se esconde esse silêncio
de que surdem figuras entrando nas palavras.
Hoje
Fiz anos hoje… Quero ver agora
Se este sofrer que me atormenta tanto
Me não deixa lembrar a paz, o encanto,
A doce luz de meu viver de outr’ora.Tão moça e mártir! Não conheço aurora,
Foge-me a vida no correr do pranto,
Bem como a nota de choroso canto
Que a noite leva pelo espaço em fora.Minh’alma voa aos sonhos do passado,
Em busca sempre d’esse ninho amado
Onde pousava cheia de alegria.Mas, de repente, num pavor de morte,
Sente cortar-lhe o vôo a mão da sorte…
Minha ventura só durou um dia.
Visão Da Morte
Olhos voltados para mim e abertos
Os braços brancos, os nervosos braços,
Vens d’espaços estranhos, dos espaços
Infinitos, intérminos, desertos…Do teu perfil os tímidos, incertos
Traços indefinidos, vagos traços
Deixam, da luz nos ouros e nos aços,
Outra luz de que os céus ficam cobertos.Deixam nos céus uma outra luz mortuária,
Uma outra luz de lívidos martírios,
De agonies, de mágoa funerária…E causas febre e horror, frio, delírios,
Ó Noiva do Sepulcro, solitária,
Branca e sinistra no clarão dos círios!
Ruínas
Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente,
As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.