Passagens de Florbela Espanca

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A Minha Dor

A minha Dor Ă© um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos tĂŞm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos tĂŞm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martĂ­rios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguĂ©m ouve… ninguĂ©m vĂŞ… ninguĂ©m…

Julguei gostar dum homem em toda a minha vida e afinal nem desse gostei porque o esqueci em menos tempo do que uma criança leva a esquecer uma boneca partida.

Se as minhas mĂŁos em garra se cravassem sobre um amor em sangue a palpitar… Quantas panteras bárbaras mataram sĂł pelo raro gosto de matar!

Espera…

NĂŁo me digas adeus, Ăł sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixĂŁo antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que nĂŁo lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera… espera… Ăł minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…

Abaixo sempre os meus olhos
Quando encontro o teu olhar;
De ver o sol de frente
Ninguém se pode gabar!

SĂŁo sempre os que eu recordo que me esquecem… Mas digo para mim: «nĂŁo me merecem». E já nĂŁo fico tĂŁo abandonada! Sinto que valho mais, mais pobrezinha: que tambĂ©m Ă© orgulho ser sozinha, e tambĂ©m Ă© nobreza nĂŁo ter nada!

Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas prendeu da vida, assim como ninguém, os maus espinhos sem tocar nas rosas.

Se eu tivesse saúde e dinheiro e andasse, como elas andam, a aparecer em toda a parte e a receber em suas casas toda a gente de influência nos jornais, já falavam de mim porque isto é assim: quem não aparece, esquece.

Frieza

Os teus olhos sĂŁo frios como espadas,
E claros como os trágicos punhais;
TĂŞm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
“Ah! Quem me dera, IrmĂŁ, amar assim!…”

Tu julgas entĂŁo que eu ambiciono alguma coisa no mundo? Ainda me conheces pouco! Eu fatigo-me atĂ© de desejar; nada há neste mundo que me nĂŁo tenha cansado! Eu mais que ninguĂ©m compreendo o poeta: «Tout passe, tout lasse». E ainda tu julgas que eu me preocupo a desejar sucesso aos meus versos patetas!?… Se eu desejasse alguma coisa que deles me viesse, nĂŁo trabalhava!

Para QuĂŞ?

Ao velho amigo JoĂŁo

Para quĂŞ ser o musgo do rochedo
Ou urze atormentada da montanha?
Se a arranca a ansiedade e o medo
E este enleio e esta angĂşstia estranha

E todo este feitiço e este enredo
Do nosso prĂłprio peito? E Ă© tamanha
E tĂŁo profunda a gente que o segredo
Da vida como um grande mar nos banha?

Pra que ser asa quando a gente voa,
De que serve ser cântico se entoa
Toda a canção de amor do Universo?

Para quĂŞ ser altura e ansiedade,
Se se pode gritar uma Verdade
Ao mundo vĂŁo nas sĂ­labas dum verso?

O meu mundo nĂŁo Ă© como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angĂşstia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se nĂŁo sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quĂŞ!

Ă“ pavoroso mal de ser sozinha!
Ă“ pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!

Estou tão magrita! A lâmina vai corroendo a bainha, a pouco e pouco, mas implacavelmente, com segurança. Devo ter por alma um diamante ou uma labareda e sinto nela a beleza inquietante e misteriosa das obras incompletas ou mutiladas.

Olha para mim, amor, olha para mim; Meus olhos andam doidos por te olhar! Cega-me com o brilho de teus olhos Que cega ando eu há muito por te amar.

Eu

Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu nĂŁo era
Aquela que em meus versos descrevera
TĂŁo clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu nĂŁo era Eu nĂŁo o sabia
E, mesmo que o soubesse, nĂŁo o dissera…
Olhos fitos em rĂştila quimera
Andava atrás de mim…e nĂŁo me via!

Andava a procurar-me — pobre louca!
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!

É nas almas simples que o amor é mais puro e mais forte. O manancial de águas claras que na planície vai matar sedes e reverdecer os campos, jorra do seio das duras pedras das montanhas em sítios agrestes, longe e alto!

Eu tudo compreendo, tudo sei; tenho passado a vida a arrancar-me espinhos, que não há nada que não tenha passado em mim; e a ronda trágica desta vida tem dançado comigo todas as suas danças. E para tudo tenho encontrado remédio, e tenho-me arrastado sempre; embora cansada e esfarrapada, tenho-me deixado viver.

Minha Terra

A. J. EmĂ­dio Amaro

Ă“ minha terra na planĂ­cie rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viu o mar
Onde tenho o meu pĂŁo e a minha casa…

Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folha… a dormitar…
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra mourisca a arder em brasa!

Minha terra onde meu irmĂŁo nasceu…
Aonde a mĂŁe que eu tive e que morreu,
Foi moça e loira, amou e foi amada…

Truz… truz… truz… Eu nĂŁo tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, Ă© quase noite…
Terra, quero dormir… dá-me pousada!

Deixe-me dizer-lhe pela última vez que eu não tenho recordações. Ninguém guarda lembranças do que profundamente despreza.