A Torpe Sociedade onde Nasci
I
Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.II
Que feliz eu era entĂŁo e que alegria…
Que loucura a brincar, santo delĂrio!…
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p’ra o martĂrio!III
Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrĂvel que me impĂ´s
A torpe sociedade onde nasci:
— De ser vĂtima humilde ou ser algoz…IV
E agora Ă© o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas nĂŁo sou o que seria
Se o mundo fosse bom — como não é!V
Tuberculoso!… Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas nĂŁo quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo Ă morte…
Passagens sobre MartĂrio
50 resultadosRegenerada
De mĂŁos postas, Ă luz de frouxos cĂrios
Rezas para as Estrelas do Infinito,
Para os Azuis dos siderais EmpĂreos
Das Orações o doloroso rito.Todos os mais recĂ´nditos martĂrios,
As angústias mortais, teu lábio aflito
Soluça, em preces de luar e lĂrios,
Num trêmulo de frases inaudito.Olhos, braços e lábios, mãos e seios,
Presos, d’estranhos, mĂsticos enleios,
Já nas Mágoas estão divinizados.Mas no teu vulto ideal e penitente
Parece haver todo o calor veemente
Da febre antiga de gentis Pecados.
Talvez mesmo todas as filosofias dos homens nada mais sejam do que expressĂŁo do horror pelo martĂrio, do que uma fraqueza inconfessada perante o duro existir, do que uma ilusĂŁo a que, para conseguirem viver, dĂŁo o nome de certeza.
LXXV
Como se moço e não bem velho eu fosse
Uma nova ilusĂŁo veio animar-me.
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios que vinham desolar-me.Vi-me no cimo eterno da montanha,
Tentando unir ao peito a luz dos cĂrios
Que brilhavam na paz da noite estranha.Acordei do áureo sonho em sobressalto:
Do cĂ©u tombei aos caos dos meus martĂrios,
Sem saber para que subi tĂŁo alto…
ReminiscĂŞncia
Um dia a vi, nas lamas da miséria,
Como entre pântanos um branco lĂrio,
Velada a fronte em palidez funérea,
O frio vĂ©u das noivas do martĂrio!Pedia esmola — pequena e sĂ©ria —
Os seios, pastos de eternal delĂrio,
Cobertos eram de uma cor cinérea —
Seus olhos tinham o brilhar do cĂrio.Tempos depois n’um carro — audaz, brilhante,
Uma mulher eu vi — febril, galante…
Lancei-lhe o olhar e… maldição! tremi…Ria-se — cĂnica, servil… faceira?
O carro n’uma nuvem de poeira
Se arremessou… e eu nunca mais a vi!
Vaidosa
Dizem que tu Ă©s pura como um lĂrio
E mais fria e insensĂvel que o granito,
E que eu que passo aĂ por favorito
Vivo louco de dor e de martĂrio.Contam que tens um modo altivo e sĂ©rio,
Que Ă©s muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que Ă©s um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.E narram o cruel martirológio
Dos que sĂŁo teus, Ăł corpo sem defeito,
E julgam que Ă© monĂłtono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tĂŁo loura e dourada como as messesE possuis muito amor… muito amor-prĂłprio.
O martĂrio… Ă© a Ăşnica maneira de ganhar fama sem ter competĂŞncia.
Talento nĂŁo Ă© Sabedoria
Deixa-me dizer-te francamente o juĂzo que eu formo do homem transcendente em gĂ©nio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes. O homem de talento Ă© sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento nĂŁo Ă© sabedoria. Sabedoria Ă© o trabalho incessante do espĂrito sobra a ciĂŞncia. O talento Ă© a vibração convulsiva de espĂrito, a originalidade inventiva e rebelde Ă autoridade, a viagem extática pelas regiões incĂłgnitas da ideia. Agostinho, FĂ©nelon, Madame de StaĂ«l e Bentham sĂŁo sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron sĂŁo talentos.
Compara as vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutam o talento com a sabedoria. Porque é mau o homem de talento ? Essa bela flor porque tem no seio um espinho envenenado ? Essa esplêndida taça de brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a toca ? Aqui tens um tema para trabalhos superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de cabeças académicas !
A Minha Dor
A minha Dor Ă© um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.Os sinos tĂŞm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos tĂŞm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…A minha Dor Ă© um convento. Há lĂrios
Dum roxo macerado de martĂrios,
Tão belos como nunca os viu alguém!Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguĂ©m ouve… ninguĂ©m vĂŞ… ninguĂ©m…
As saudades que de ti me angustiavam aniquilaram-me o espĂrito e o corpo. Estou doente; nem o punho pode menear uma pena, que te retrate o que Ă© martĂrio incomportável no coração do homem, que com lagrimas te escrevera. (…) Se nĂŁo queres que a morte despedace estes vĂnculos sagrados, vem como o anjo da vida sentar-te Ă cabeceira do moribundo.
Gazel da Lembrança de Amor
Tua lembrança não leves.
Deixa-a sozinha em meu peito,tremor de alva cerejeira
no martĂrio de janeiro.Dos que morreram separa-me
um muro de sonhos maus.Dou pena de lĂrio fresco
para um coração de gesso.A noite inteira, no horto,
meus olhos, como dois cĂŁes.A noite inteira, correndo
os marmelos de veneno.Algumas vezes o vento
uma tulipa Ă© de medo,Ă© uma tulipa enferma
a madrugada de inverno.Um muro de sonhos maus
me afasta dos que morreram.A névoa cobre em silêncio
o vale gris de teu corpo.Pelo arco do encontro
a cicuta está crescendo.Mas deixa tua lembrança,
deixa-a sozinha em meu peito.Tradução de Oscar Mendes
XCIX
Parece, ou eu me engano, que esta fonte
De repente o licor deixou turvado;
O céu, que estava limpo, e azulado,
Se vai escurecendo no horizonte:Por que nĂŁo haja horror, que nĂŁo aponte
O agouro funestĂssimo, e pesado,
Até de susto já não pasta o gado;
Nem uma voz se escuta em todo o monte.Um raio de improviso na celeste
RegiĂŁo rebentou; um branco lĂrio
Da cor das violetas se reveste;Será delĂrio! nĂŁo, nĂŁo Ă© delĂrio.
Que Ă© isto, pastor meu? que anĂşncio Ă© este?
Morreu Nise (ai de mim!) tudo Ă© martĂrio.
Lirial
Por que choras assim, tristonho lĂrio,
Se eu sou o orvalho eterno que te chora,
P’ra que pendes o cálice que enflora
Teu seio branco do palor do cĂrio?!Baixa a mim, irmĂŁ pálida da Aurora,
Estrela esmaecida do MartĂrio;
Envolto da tristeza no delĂrio,
Deixa beijar-te a face que descora!Fosses antes a rosa purpurina
E eu beijaria a pétala divina
Da rosa, onde nĂŁo pousa a desventura.Ai! que ao menos talvez na vida escassa
Não chorasses à sombra da desgraça,
Para eu sorrir Ă sombra da ventura!
O silĂŞncio Ă© o maior dos martĂrios; nunca os santos se calaram.
Lágrimas
A meu irmão João Câncio
Eu nĂŁo sei o que tenho… Essa tristeza
Que um sorriso de amor nem mesmo aclara,
Parece vir de alguma fonte amara
Ou de um rio de dor na correnteza.
Minh’alma triste na agonia presa,
NĂŁo compreende esta ventura clara,
Essa harmonia maviosa e rara
Que ouve cantar alĂ©m, pela devesa.Eu nĂŁo sei o que tenho… Esse martĂrio,
Essa saudade roxa como um lĂrio,
Pranto sem fim que dos meus olhos corre,Ai, deve ser o trágico tormento,
O estertor prolongado, lento, lento,
Do Ăşltimo adeus de um coração que morre…
X
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lĂrios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer AlĂ©m novos martĂrios.De mĂŁos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro cĂrios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade MĂ©dia, morta em sagrados delĂrios.Os poentes sepulcrais do extremo desengano
VĂŁo enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…
LĂrio Lutuoso
EssĂŞncia das essĂŞncias delicadas,
Meu perfumoso e tenebroso lĂrio,
Oh! dá-me a glĂłria de celeste EmpĂreo
Da tu’alma nas sombras encantadas.Subindo lento escadas por escadas,
Nas espirais nervosas do MartĂrio,
Das Ă‚nsias, da Vertigem, do DelĂrio,
Vou em busca de mágicas estradas.Acompanha-me sempre o teu perfume,
LĂrio da Dor que o Mal e o Bem resumem,
Estrela negra, tenebroso fruto.Oh! dá-me a glória do teu ser nevoento
para que eu possa haurir o sentimento
Das lágrimas acerbas do teu luto!.
A Escola Portuguesa
Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisĂŁo:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola Ă© o zangĂŁo.Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d’aurora.Soletram versos e prosas
HorrĂveis; contudo, ao lĂŞ-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmĂşrios de estrela.Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.Oh, que existĂŞncia doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatĂłria!E como os dias sĂŁo longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martĂrios!
JoĂŁo FĂ©lix co’as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lĂrios!Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeĂŁ,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discĂp’lo — AmanhĂŁ!Como Ă© que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se Ă© o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!
A Mulher que Passa
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio Ă© um campo de lĂrios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!Oh! Como és linda, mulher que passas
que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!Teus sentimentos sĂŁo poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pĂŞlos leves sĂŁo relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!Porque me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?Por que nĂŁo voltas, mulher que passa?
Por que nĂŁo enches a minha vida?
Por que nĂŁo voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que nĂŁo voltas Ă minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
XXIII
Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata
Almena Contra o meu rendimento se conjura:Aqui me manda estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da filomena,
E bem que este martĂrio hoje me ordena,
Jamais espero ter melhor ventura.Veio a dar me somente uma esperança
Nova idéia do ódio; pois sabia,
Que o rigor nĂŁo me assusta, nem me cansa:Vendo a tanto crescer minha porfia,
Quis mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirania.