Para Ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudoPara ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do semprePara ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
Passagens sobre Perfume
206 resultadosAleluia
Se cantas, nasce o dia;
A luz segreda à flor: Ave, Maria!Tudo é silêncio, espanto,
Quando vaga no Azul o teu encanto…Passas e deixas no ar
O perfume das rosas de toucar!Creio em ti, como em Deus;
Viver à tua luz é estar nos Céus!Verdes enleios de hera
Cingem de amor teu vulto, ó Primavera!Nos perdidos caminhos,
Voam gorjeios, músicas dos ninhos…A Terra em névoas de ouro
Ascende a Deus em teu olhar de choro!Senhora da Harmonia,
Em ti a minha vida principia!Se voas pela Altura,
Gravas no Azul a tua formosura!Teu voo é um longo adeus:
O caminho das almas para os Céus…Longe, saudosa, adejas,
E pairas sobre mim… bendita sejas!
Teu Só Sossego aqui Contigo Ausente
Teu só sossego aqui contigo ausente
Na casa que te veste à justa de paredes,
Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente
Dos cuidados que deixas ao partir,
A doce estância toda povoada
Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto
Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine,
Como uma estátua fiel ao labirinto.
Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas,
Farmácia chamo à tua colecção de vidros
Onde, à margem de planos e de somas,
Tenho remédio para os meus alvidros.
O chá é forte e adstringente,
O leite grosso sabe à ordenha,
E até nos quadros vive gente
À espera que a dona venha.
Porque tudo nos tectos é coroa,
No chão as traînes, os passinhos salpicados
Como o vento ainda longe de Lisboa
Escolheu a gaivota do balanço
Que no cais engolfado melhor voa:
Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo
Chegues no ar medido e a aço propulso:
Por isso um pouco de fogo
Bate sanguíneo em meu pulso,
Pois o amor de quem espera
É uma graça a vencer.
Benção
Quando, por uma lei da vontade suprema,
O Poeta vem a luz d’este mundo insofrido
A desolada mãe, numa crise de blasfêmia,
Pragueja contra Deus, que a escuta comovido:— “Antes eu procriasse uma serpe infernal!
Do que ter dado vida a um disforme aleijão!
Maldita seja a noite em que o prazer carnal
Fecundou no meu ventre a minha expiação!Já que fui a mulher destinada, Senhor,
A tornar infeliz quem a si me ligou,
E não posso atirar ao fogo vingador
O fatal embrião que meu sangue gerou.Vou fazer recair o meu ódio implacável
No monstro que nasceu das tuas maldições
E saberei torcer o arbusto miserável
De modo que não vingue um só dos seus botões!”E sobre Deus cuspindo a sua mágoa ingente
Ignorando a razão dos desígnios do Eterno,
A tresloucada mãe condena, inconsciente,
A sua pobre alma às fogueiras do inferno.Bafeja a luz do sol o fruto malfadado,
Vela pelo inocente um anjo peregrino;
A água que ele bebe é um néctar perfumado,
O pão é um manjar saboroso,
Retrato de Amigo
Por ti falo. E ninguém sabe. Mas eu digo
meu irmão minha amêndoa meu amigo
meu tropel de ternura minha casa
meu jardim de carência minha asa.Por ti morro e ninguém pensa. Mas eu sigo
um caminho de nardos empestados
uma intensa e terrífica ternura
rodeado de cardos por muitíssimos lados.Meu perfume de tudo minha essência
meu lume minha lava meu labéu
como é possível não chegar ao cume
de tão lavado céu?
Revelação
II
Treva e fulguração; sânie e perfume;
Massa palpável e éter; desconforto
E ataraxia feto vivo e aborto. ..
– Tudo a unidade do meu ser resume!Sou eu que, ateando da alma o occíduo lume,
Apreendo, em cisma abismadora absorto,
A potencialidade do que é morto
E a eficácia prolífica do estrume!Ah! Sou eu que, transpondo a escarpa
Dos limites orgânicos estreitos,
Dentro nos quais recalco em vão minha ânsia,Sinto bater na putrescível crusta
Do tegumento que me cobre os peitos
Toda a imortalidade da Substância!
Pintura
Onde se diz espiga
leia-se narciso.
Ou leia-se jacinto.
Ou leia-se outra flor.
Que pode ser a mesma.As flores
são formas
de que a pintura se serve
para disfarçar
a natureza. Por isso
é que
no perfil
duma flor
está também pintado
o seu perfume.
Mapa
Ao norte, a torre clara, a praça, o eterno encontro,
A confidência muda com teu rosto por jamais.
A leste, o mar, o verde, a onda, a espuma,
Esse fantasma longe, barco e bruma,
O cais para a partida mais definitiva
A urna distancia percorrida em sonho:
Perfume da lonjura, a cidade santa.O oeste, a casa grande, o corredor, a cama:
Esse carinho intenso de silêncio e banho.
A terra a oeste, essa ternura de pianos e janelas abertas
A rua em que passavas, o abano das sacadas: o morro e o
cemitério e as glicínias.
Ao sul, o amor, toda a esperança, o circo, o papagaio, a
nuvem: esse varal de vento,
No sul iluminado o pensamento no sonho em que te sonho
Ao sul, a praia, o alento, essa atalaia ao teu paísMapa azul da infância:
O jardim de rosas e mistério: o espelho.
O nunca além do muro, além do sonho o nunca
E as avenidas que percorro aclamado e feliz.Antes o sol no seu mais novo raio,
O acordar cotidiano para o ensaio do céu,
Não me digas adeus, ó sombra amiga, abranda mais o ritmo dos teus passos; sente o perfume da paixão antiga dos nossos bons e cândidos abraços! Não vás ainda embora, ó sombra amiga!
As Rosas
Rosas que desabrochais,
Como os primeiros amores,
Aos suaves resplendores
Matinais;Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco vale; é o diadema
Da ilusão.Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
Em vão, como penhor de puro afeto,
Como um elo das almas,
Passais do seio amante ao seio amante;
Lá bate a hora infausta
Em que é força morrer; as folhas lindas
Perdem o viço da manhã primeira,
As graças e o perfume.
Rosas que sois então? – Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese à beleza,
Pereceis;
Mas, não… Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
Floresceis.
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Tu Mandaste-me Dizer
Tu mandaste-me dizer
Que tornavas novamente
Quando viesse a tardinha;
E eu, para mais te prender,
– N’esse dia…Pintei de negro os meus olhos
E de rôxo a minha boca.
As rosas eram aos mólhos
Para a noite rubra e louca!Entornei sobre o meu corpo,
– Que fôra delgado e bello!
O perfume mais extranho e mais subtil;
E um brocado rôxo e verde
Envolveu a minha carne
Macerada e varonil.
Os meus hombros florentinos,
Cobértos de pedraria,
Eram chagas luminosas
Alumiando o meu corpo
Todo em fébre e nostalgia.
Nas minhas mãos de cambraia,
As esmeraldas scintillavam;
E as pérolas nos meus braços,
Murmuravam…
Desmanchado, o meu cabello,
Em ondas largas, cahia,
Na minha fronte
Ligeiramente sombría.Estava pallido e dir-se-hia
Que a pallidez aumentava
A minha grande belleza!Na minha boca ondulava
Um sorriso de tristeza.A noite vinha tombando.
E, como tardasses,
Fiquei-me, sentádo, olhando
O meu vulto reflectido
No espelho de crystal;
Unge-me de Perfumes
“Gosto tanto de ti…”, dizes. É pouco.
É das tuas mãos erguidas que eu preciso.
Vê bem, Amor: não é orgulho louco.
Para os outros eu sou apenas riso.Unge-me de perfumes, minha amada,
Como certa Maria de Magdala,
Ungiu os pés d´Aquele cuja estrada
Só começou para além da vala.Ama-me mais ainda, ó meu amor
Como aquela mulher ungiu o Cristo,
Unge o meu corpo todo, a minha dor…Ela ungiu-o p´ra o túmulo, p´ra a Cruz.
Unge-me teu, p´ra o Sol por quem existo:
Viver é ir morrendo a beijar luz.
O Sucesso para um Grande Amor
Estou contente porque a minha querida não tem ainda o afecto exclusivo e único que há-de sentir um dia por um homem, apesar de todas as suas teorias que há-de ver voar, voar para tão longe ainda!… E no entanto, elas são tão verdadeiras! Ainda assim, minha querida Júlia, uma das coisas melhores da nossa vida de tão prosaico século, é o amor, o grande e discutido amor, o nosso encanto e o nosso mistério; as nossas pétalas de rosa e a nossa coroa de espinhos. O amor único, doce e sentimental da nossa alma de portugueses, o amor de que fala Júlio Dantas, «uma ternura casta, uma ternura sã» de que «o peito que o sente é um sacrário estrelado», como diz Junqueiro; o amor que é a razão única da vida que se vive e da alma que se tem; a paixão delicada que dá beijos ao luar e alma a tudo, desde o olhar ao sorriso, — é ainda uma coisa nobre, bela e digna! Digna de si, do seu sentir, do seu grande coração, ao mesmo tempo violento e calmo. Esse amor que «em sendo triste, canta, e em sendo alegre, chora», esse amor há-de senti-lo um dia,
Distante Melodia
Num sonho d’Iris, morto a ouro e brasa,
Vem-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule –
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.Então os meus sentidos eram côres,
Nasciam num jardim as minhas ansias,
Havia na minh’alma Outras distancias –
Distancias que o segui-las era flôres…Caía Ouro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me…
Noites-lagôas, como éreis belas
Sob terraços-liz de recordar-me!…Idade acorde d’Inter sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua…Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume…
Dominio inexprimivel d’Ópio e lume
Que nunca mais, em côr, hei de habitar…Tapêtes doutras Persias mais Oriente…
Cortinados de Chinas mais marfim…
Aureos Templos de ritos de setim…
Fontes correndo sombra, mansamente…Zimbórios-panthéons de nostalgias…
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar…
Escadas de honra, escadas só, ao ar…
Novas Byzancios-alma, outras Turquias…Lembranças fluidas…
Da Natureza do Mistério
As coisas misteriosas são o que há de mais belo, grandioso, e doce na existência. Os mais maravilhosos sentimentos são os que nos agitam com certa confusão: pudor, amor casto, amizade virtuosa, rescendem misterioso perfume. Dirieis que os corações amantes com meias palavras se compreendem e se franqueiam. A inocência, santa ignorância, não é per si o mais inefável dos mistérios? Exulta a infância porque tudo ignora; amisera-se a velhice porque tudo sabe: felizmente para ela, principiam os mistérios da morte onde fenecem os da vida. Dá-se nos afectos o que se dá nas virtudes: as mais angélicas são as que, derivadas imediatamente de Deus, à maneira da caridade, folgam de esconder-se à vista, como a origem delas.
Caminharemos de Olhos Deslumbrados
Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
O gosto a sol e a sangue dos sentidos.Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
E coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.
A mulher é uma flor que só à sombra exala o seu perfume.
Sêde de Amor
I
Vi-te uma vez e (novo
Extranho caso foi!)
Por entre tanto povo…
Tanta mulher… SuppõeQue mãe estremecida
Via o seu filho andar
Sobre muralha erguida,
Onde o fizesse ir darAquelle remoinho,
Aquella inquietação
D’um pobre innocentinho
Ainda sem razão!E ora estendendo os braços…
Ora apertando as mãos…
Vendo-lhe o gesto, os passos,
Quantos esforços vãos,O triste na cimalha
Faz por voltar atraz…
Sem vêr como lhe valha!
A vêr o que elle faz!Pallida, exhausta, muda,
Os olhos uns tições,
Com que, a tremer, lhe estuda
As mesmas pulsações…(Porque não é mais fundo
O mar no equador,
Nem é todo este mundo
Maior do que esse amor!Mais vasto, largo e extenso
Todo esse céo tambem
Do que o amor immenso
D’um coração de mãe!)Assim, n’essa agonia…
N’essa intima avidez…
É que entre os mais te eu ia
Seguindo d’essa vez!Porque te adoro!… a ponto,
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, ? e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.