Visio
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam…
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam…
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam…Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes…Depois… depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei… silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
Poemas sobre Alma
427 resultadosA Minha Filha
(Vendo-a dormir)
Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d’alvorada
Dentro dum botão de rosa!E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve…E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado!
Esta Velha Angústia
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo,
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida…Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito,
No Crepusculo
Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Êrmos, soturnos pincaros sósinhos…
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz… e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros…Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepusculo, desmaiam
E assim como os seus canticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragarosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, boccas de terra, murmurantes,
Arvoredos extaticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam tambem no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado…E eu choro sobre um monte abandonado…
E o Phantasma divino da Creança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dôr!E choro; e alem das lagrimas, eu vejo
Aquele dôce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e soffrimento;
Jesus martirisado, inda Menino…
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!
Enfim Fenece o Dia
Enfim fenece o dia,
Enfim chega da noite o triste espanto,
E não chega desta alma o doce encanta
Enfim fica triunfante a tirania,
Vencido o sofrimento,
Sem alívio meu mal, eu sem alento,
A sorte sem piedade,
Alegre a emulação, triste a vontade,
O gosto fenecido,
Eu infelice enfim, Lauro esquecido…
Quem viu mais dura sorte?
Tantos males, amor, para uma morte?
Não basta contra a vida
Esta ausência cruel, esta partida?Não basta tanta dor? tanto receio?
Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio?
Não basta estar ausente,
Para perder a vida infelizmente?
Se não também, cruel, neste conflito
Me negas o socorro de um escrito?
Porque esta dor que a alma me penetra
Não ache o maior bem na menor letra,
Ai! bem fazes, amor, tira-me tudo!
Não há alívio, não, não há escudo,
Que a vida me defenda,
Tudo me falte, enfim, tudo me ofenda,
Tudo me tire a vida,
Pois eu a não perdi na despedida.
Não Sou Casado, Senhora
Não sou casado, senhora,
que ainda não dei a mão,
não casei o coração.Antes que vos conhecesse,
sem errar contra vós nada,
uma só mão fiz casada,
sem que mais nisso metesse.
Dou-lhe que ela se perdesse!
solteiros e vossos são
os olhos e o coração.Dizem que o bom casamento
se há de fazer de vontade.
Eu, a vós, a liberdade
vos dei, e o pensamento.
Nisto só me achei contento:
que, se a outrem dei a mão,
dei a vós o coração.Como, senhora, vos vi,
sem palavras de presente
na alma vos recebi,
onde estareis para sempre,
não de palavra somente;
nem fiz mais que dar a mão,
guardando-vos o coração.Casei-me com meu cuidado
e com vosso desejar.
Senhora, não sou casado,
não mo queirais acuitar!
que servir-vos e amar
me nasceu do coração
que tendes em vossa mão.O casar não fez mudança
em meu antigo cuidado,
nem me negou a esperança
do galardão esperado.
Te Baptizar de Novo
Te baptizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, porque não?
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis:
Palha
Corça
Nula
Praia
Porque não?
Nem Sempre Sou Igual no que Digo e Escrevo
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma …
Attracção
Meus olhos sempre inquietos
Que posso até dizer,
Só acham n’alma objectos
Que os possam entreter;Meus olhos… coisa rara!
Porque hão de em ti parar
Como a corrente pára
Em encontrando o mar!?E penso n’isto, scismo…
Mas é tão natural
Cahir-se no abysmo
D’uma belleza tal!…Olhei!… Foi indiscreta
A vista que te puz.
A pobre borboleta
Viu luz… cahiu na luz!Uma attracção mais forte
Que toda a reflexão,
(É fado, é sina, é sorte!)
Me arrasta o coração…
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze,
Alcool
Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.Batem asas d’auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de côr e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho… Em vão! Silvo pra além…Corro em volta de mim sem me encontrar…
Tudo oscila e se abate como espuma…
Um disco de ouro surge a voltear…
Fecho os meus olhos com pavor da bruma…Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d’inferno em vez de paraíso?…
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi alcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.
Balada de Sempre
Espero a tua vinda
a tua vinda,
em dia de lua cheia.Debruço-me sobre a noite
a ver a lua a crescer, a crescer…Espero o momento da chegada
com os cansaços e os ardores de todas as chegadas…Rasgarás nuvens de ruas densas,
Alagarás vielas de bêbados transformadores.
Saltarás ribeiros, mares, relevos…
– A tua alma não morre
aos medos e às sombras!-Mas…,
Enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí além,
sempre duvidoso,
desenha interrogações na areia molhada…
Alegria
De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho…,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escuraduma nova amargura…
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade…
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte…
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.
O Solitário Gesto de Viver
Onde as patas da vida pisam firme,
armei o meu bivaque. Sou gaudério
nos longes destes campos assolados
por sóis intermináveis que ressecam
os verdes pervagados das querências.
Ali onde me encontro, planto as solas
dos pés como o quebracho da fronteira.
A solas me interrogo no horizonte,
sombrero descaído para a nuca,
desarmado, cismando, a bomba e a cuia
me servindo do amargo todo vida.
Bombachas encardidas, poncho roto,
não afrouxo o garrão, sigo adelante.
Quem sou eu, afinal? Alma penada,
lobisomem perdido na campina,
um ratão do banhado espavorido
no incêndio da macega desta vida,
ela própria rompida em suas partes
mais vitais, mais profundas, mais curtidas,
um pelego no sol, colgado em varas
nas ventanas do pampa enlouquecido.
Em Viagem
Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim…Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d’ave
Presa numa sepultura!…Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.E sem extremo conforto
Que eu ness’hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.
A Árvore, a Estrela e a Pequena Mão
A pequena mão desenha a árvore
onde uma estrela se aninha para dormir.
Que dia será o de amanhã
no meio dos escombros onde o eco da súplica
enlouquece os cães famintos?
Quadro trágico para uma noite assim.
A pequena mão pega na borracha
e tenta apagar toda a dor do mundo
e acender com um novo traço
a claridade que resgata a alma.
A estrela acorda numa copa alta
e segue o caminho do que sabe
até encontrar a pequena mão
que tudo reinventa à medida do que somos.
Quando o encontro acontece
já não é noite nem dia, tempo infinito,
mas apenas um lugar onde o choro das crianças
de súbito se transforma em cântico.A pequena mão desenha tudo
o que falta desenhar para o sonho fazer sentido.
É uma mão frágil mas firme, apenas sábia,
e quando abre o livro azul das manhãs
é sempre para escrever as palavras
que o estrondo abafou nas cidades feridas.
A pequena mão desenha uma árvore,
uma estrela e uma mãe aflita.
Depois desenha uma linha de horizonte,
A Angústia Insuportável de Gente
Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)
Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser…
Estas Almas Incertas
Quero um mal de morte
A estas almas incertas.
Tortura-as a honra que vos fazem,
Pesam-lhes, dão-lhe vergonha os seus louvores.
Porque não vivo
Preso à sua trela,
Saúdam-me com um olhar agridoce.
Onde passa uma inveja sem esperança.Ah! Porque não me amaldiçoam!
Porque não me viram francamente as costas!
Aqueles olhos suplicantes e extraviados
Hão-de enganar-se sempre a meu respeito.
Enlevo
Não brilha o sol,
Nem póde a lua
Brilhar na sua
Presença d’ella!..
Nenhuma estrella
Brilha deante
Da minha amante,
Da minha amada!A madrugada
Quanto não perde!
O campo verde
Quanto esmorece!
Quanto parece
A voz da ave
Menos suave
Que a sua falla!A flôr exhala
Menos perfume
Do que é costume
O seu cabello!
Que basta vêl-o,
Prende-se a gente!
Prende-se e sente
Gosto ineffavel!Que riso affavel
Aquelle riso!
Que paraíso
Aquella bôca!
Penetra, toca,
Enche de inveja
Um ar que seja
Da sua graça!Onde ella passa,
Onde ella chega,
Quem lhe não prega
Olhos avaros!
Ha dotes raros,
Rara doçura
N’aquella pura
Casta existencia!Oh! que innocencia
Que ella respira!
A alma aspira
Não sei que aroma
Mal nos assoma
Ao longe aquella
Pallida estrella,
Que rege o mundo!…Nunca do fundo
Do oceano
Foi braço humano
Colher tão linda
Perola ainda,