O Homem que Contempla
Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
Poemas sobre Dia
652 resultadosHistória Antiga
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Autobiografia de um Só Dia
A Maria Dulce e Luiz Tavares
No Engenho Poço não nasci:
minha mãe, na véspera de mim,veio de lá para a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram,os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré.Ou porque chegássemos tarde
(não porque quisesse apressar-me,e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)ou porque o doutor deu-me quandos,
minha mãe no quarto-dos-santos,misto de santuário e capela,
lá dormiria, até que para ela,fizessem cedo no outro dia
o quarto onde os netos nasciam.Porém em pleno Céu de gesso,
naquela madrugada mesmo,nascemos eu e minha morte,
contra o ritual daquela Corteque nada de um homem sabia:
que ao nascer esperneia, grita.Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,pois são blasfêmias sangue e grito
em meio à freirice de lírios,mesmo se explodem (gritos, sangue),
de chácara entre marés, mangues.
Todos os Dias
Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas…Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo…Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações…Todos os dias
nascem risos, canções…Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs…Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs…
A Ti
Como o sol nasce do monte
E todo o vale alumia,
Assim no meu horizonte
Nasceu teu olhar, um dia.Nessa manhã cor-de-rosa,
Que dos teus olhos saía,
Tua voz melodiosa
Foi a voz da cotovia.E logo na minha mágoa,
Neste canteiro sem flor,
Brotou, qual nascente de água,
O teu amor, meu Amor!Então fez sol deslumbrante
Nos dias da minha vida:
Já não era a luz distante,
Já não a fonte escondida.Nuvens, tormentas e dores,
Que enchiam meu coração,
Tudo se cobriu de flores,
A esse divino clarão!E à luz que os teus olhos deram,
Como faróis redentores,
Mundos no mundo nasceram,
Do amor brotaram amores.Três aves no nosso ninho
O enchem de um fulgor sagrado:
Já não és o sol sozinho,
Fizeste o céu estrelado!Deus te proteja e te guarde,
Minha Mulher, minha Irmã,
Ó minha Estrela da Tarde,
Minha Estrela da Manhã!
Para As Raparigas de Coimbra
1
Ó choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós:
És tal qual meu avôzinho,
Falta-te apenas a voz.2
Minha capa vos acoite
Que é p’ra vos agazalhar:
Se por fóra é cor da noite,
Por dentro é cor do luar…3
Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do céu!4
A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao sol:
Não cae, tolinho, a essa isca…
Só pondo uma flor no anzol!5
A lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É d’uma certa farinha
Que não apanha bolor!6
Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu’é da tua agoa?
Qu’é dos prantos que eu chorei?7
A cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim:
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam, assim.8
–
Sonhos Meus
Sonhos meus, suaves sonhos,
Sois melhores do que a verdade;
Quando sonho sou ditosa,
Sem o ser na realidade.Amor, tu vens nos meus sonhos
Acalmar-me o coração;
Mas cruel! Quanto prometes
Não passa de uma ilusão.Sonhei, tirano, esta noite,
Sonhei que tu me chamavas,
E que sobre a relva branda
Tu mesmo me acalentavas.Disseste-me: “Dorme, Alcipe,
Amor sobre ti vigia,
Mal podes temer os fados.”Dormi: neste dobre sono
Me achei n’um palacio d’ouro:
Entregaram-me uma chave
Para que abrisse um tesouro.– “Chave mágica, sublime,
Que me vais tu descobrir?
Se é menos do que eu desejo
Será melhor não abrir…”– “Abre, Alcipe” qual trovão
Brada o deus que me vigia:
Acordei sobressaltada,
E abriu-se, mas foi o dia.
Partiste
Numa densa nuvem, partiste!
Ficou o eco da tua voz
E o doce afago do teu olhar.
Este amor, que em mim persiste,
Põe a minha alma mais triste
Por te não poder beijar.
Também eu um dia irei,
Contigo aí ficarei
Para te acariciar,
Talvez então nesse dia,
Eu sinta mais alegria
E já não queira voltar.
Os Homens Gloriosos
Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos…
pegajosas de lodo e sangue denso.Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio triste e simples
de lágrima interminável, com sua centelha ardente e eterna.Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo,
em planta incomunicável,
em pedra sem respiração.Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!Reduze a pó
a memória dos homens,
fingir que está tudo bem
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
Devagar te Amo
Devagar te amo, e devagar assomo
os dedos à altura dos olhos, do cabelo
dos anéis de outro turno, que é só meu
por querê-lo, meu amor, como a ti mesma quero
nos tempos de passado e sem futuro.
Devagar avanço um dealbar de dias
que vida seriam – mesmo que morto, à noite,
eu voltasse amargurado mas presente,
calado e quedo, e devagar amando.
O Dia Deu em Chuvoso
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.Carinhos? Afetos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso?
Não Fora o Mar!
Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.
Mysticismo Humano
A alma é como a noute escura, immensa e azul,
Tem o vago, o sinistro, e os canticos do sul,
Como os cantos d’amor serenos das ceifeiras
Que cantam ao luar, á noute pelas eiras…
Ás vezes vem a nevoa á alma satisfeita,
E cae sombria, vaga, e meuda e desfeita…
E como a folha morta em lagos somnolentos
As nossas illusões vão-se nos desalentos!Tem um poder immenso as Cousas na tristeza!
Homem! conheces tu o que é a natureza?…
– É tudo o que nos cerca – é o azul, o escuro,
É o cypreste esguio, a planta, o cedro duro,
A folha, o tronco a flor, os ramos friorentos,
É a floresta espessa esguedelhada aos ventos;
Não entra o vicio aqui com beijos dissolutos,
Nem as lendas do mal, nem os choros dos lutos!…– E os que viram passar serenos os seus dias…
E curvados se vão, ás longas ventanias,
Cheio o peito de sol, atravez das florestas,
Á calma do meio dia… e dormiam as sestas,
Tranquillos sobre a eira, entre as hervas nas leivas…
Tal a Vida
Em declive trepamos pela nuvem
dos dias — em declive circundamos
obscuros cristais
transportados no sangue— e somos e
levantamos
as cores primitivas da fonte a luz
que resvala corpo a corpo
a semente sazonada de quem roubou
o fogo — em declive canto
a ternura diluída a luz reflectida
neste muro onde vejo
a secreção da fala onde ouço
um caminho de metáforas: tal
a vida —
O Sol é Grande
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
Sofro de não te Ver
Sofro
de não te ver,
de perder
os teus gestos
leves, lestos,
a tua fala
que o sorriso embala,
a tua alma
límpida, tão calma…Sofro
de te perder,
durante dias que parecem meses,
durante meses que parecem anos…Quem vem regar o meu jardim de enganos,
tratar das árvores de tenrinhos ramos?
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.Que difícil ser próprio e não ser senão o visível!
Responso
I
Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.II
É loura como as doces escocesas,
Duma beleza ideal, quase indecisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seu pecados.III
Alta noite, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansíssimas do lago.Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.IV
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.V
E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
Assim, Sem Nada Feito e o Por Fazer
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!