Por estes Campos sem Fim
Por estes campos sem fim,
onde a vista assim se estende,
que verei, triste de mim,
pois ver-vos se me defende?Todos estes campos cheios
são de saudade e pesar,
que vem para me matar,
debaixo de céus alheios.
Em terra estranha e em ar,
mal sem meio e mal sem fim,
dor que ninguém não entende,
até quão longe se estende
o vosso poder em mim!
Poemas Interrogativos
774 resultadosComo Podemos Esperar
Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aquicomo podemos esperar uma noite de lua e vento?
Aquella Orgia
Nós eramos uns dez ou onze convidados,
– Todos buscando o gozo e achando o abatimento,
E todos afinal vencidos e quebrados
No combate da Vida inutil e incruento.Tocava o termo a ceia – e ia surgindo o alvor
Da madrugada vaga, etherea e crystallina,
A alguns trazendo a vida, e enchendo outros de horor,
Branca como uma flor de prata florentina.Todos riam sem causa. – A estolida batalha
Da Materia e da Luz travara-se afinal,
E eram já côr de vinho os risos e a toalha,
– E arrojavam-se ao ar os copos de crystal.Crusavam-se no ar ditos como facadas;
Escandalos de amor, historias sensuaes…
– Rolavam nos divans caindo, ás gargalhadas,
Sujos como truões, torpes como animaes.Um agitando o ar com risos desmanchados,
Recitava canções, farças, Hamlet e Ophelia;
– Outro perdido o olhar, e os braços encruzados,
De bruços, n’um divan, roia uma camelia!Outros fingindo a dôr, fallavam dos ausentes,
Das amantes, dos paes, com gritos d’afflicção,
– Um brandia um punhal, com ditos incoherentes;
Nevermore
Ah, lembrança, lembrança, que me queres? O Outono
Fazia voar os tordos plo ar desmaiadoE o sol dardejava um monótono raio
No bosque amarelado onde a nortada ecoa.A sonhar caminhávamos os dois, a sós,
Ela e eu, pensamento e cabelos ao vento.
De repente, fitou-me em olhar comovente:
«Qual foi o teu mais belo dia?» disse a vozDe oiro vivo, sonora, em fresco timbre angélico.
Um sorriso discreto deu-lhe a minha réplica
E então, como um devoto, beijei-lhe a mão branca.— Ah! as primeiras flores, como são perfumadas!
E como em nós ressoa o murmúrio vibrante
Desse primeiro sim dos lábios bem-amados!Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Contemplo o Lago Mudo
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?
Sonambulismo
Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio dia ou noite?!…
Sonâmbula a vida decorre
– nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
– mas tudo é tão longe…
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
– sonambulismo apenas.Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente
O Sapo
Não há jardineiro assim,
Não há hortelão melhor
Para uma horta ou jardim,
Para os tratar com amor.É o guarda das flores belas,
da horta mais do pomar;
e enquanto brilham estrelas,
lá anda ele a rondar…Que faz ele? Anda a caçar
os bichos destruidores
que adoecem o pomar
e fazem tristes as flores.Por isso, ficam zangadas
as flores, se se faz mal
a quem as traz tão guardadas
com o seu cuidado leal.E ele guarda as flores belas,
a horta mais o pomar;
brilham no céu as estrelas,
e ele ronda, a trabalhar…E ao pobre sapo, que é cheio
de amor pela terra amiga,
dizem-lhe que é feio
e há quem o mate e persigaMas as flores ficam zangadas,
choram, e dizem por fim:
– «Então ele traz-nos guardadas,
e depois pagam-lhe assim?»E vendo, à noite, passar
o sapo cheio de medo,
as flores, para o consolar,
chamam-lhe lindo, em segredo…
O Abraço
(excerto)
Não vês inda, de gosto sufocados,
Um noutro nossos peitos esculpidos?
Não sentes nossos rostos tão chegados
E ainda mais os corações unidos?
Oh! Mais, mais do que unidos!
Tu fizeste, Doce encanto, que eu fosse mais que teu.
Lembra, lembra-te quando me disseste:
– Meu bem, eu não sou tu?… Tu não és eu?Goza, de todo goza o teu amante;
E unidos ambos… -Oh!… e estás tão perto!…
Meu bem, deliro, sonho ou estou desperto?
Ambos unidos em mimoso laço,
Faces, bocas unidas… Ah! que faço?…
É ar… Quando que a abraço me parece,
A mim me abraço e em ar se desvanece.
Mas que duvido com abraço estreito
Cingir-me?… Dize, não és seu, meu peito?…
[…]
Goza, meu bem (enquanto a Sorte avara
Com tanta crueldade nos separa)
Goza do alívio, que nos concedeu,
De dizer com certeza: É minha! – É meu!…
Entre o Luar e a Folhagem
Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
Natal Tão Pouco
Nasceu em Belém, ou Nazaré
(A nova teoria),
Este que nos é
O Pai-Nosso em cada dia?Que importa onde nasceu,
Se num presépio, se num leito?
A verdade sou eu
A aguardá-lo no peito.Pois abro o coração
Pra o receber,
Quer venha ou não
Do céu ou ventre de mulher.Mas, ai! a adoração dura-me instantes!
Em breve irei negá-lo
Três vezes, antes
De cantar o galo!
Cumpre-te Hoje, não Esperando
Não queiras, Lídia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não ‘sperando.
Tu mesma és tua vida.Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?
Pecado Original
Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Rosa Pálida
Rosa pálida, em meu seio
Vem, querida, sem receio
Esconder a aflita cor.
Ai!, a minha pobre rosa!
Cuida que é menos formosa
Porque desbotou de amor.Pois sim… quando livre, ao vento,
Solta de alma e pensamento,
Forte de tua isenção,
Tinhas na folha incendida
O sangue, o calor e a vida
Que ora tens no coração.Mas não eras, não, mais bela,
Coitada, coitada dela,
A minha rosa gentil!
Coravam-na então desejos,
Desmaiam-na agora os beijos…
Vales mais mil vezes, mil.Inveja das outras flores!
Inveja de quê, amores?
Tu, que vieste dos Céus,
Comparar tua beleza
Às filhas da natureza!
Rosa, não tentes a Deus.E vergonha!… de quê, vida?
Vergonha de ser querida,
Vergonha de ser feliz!
Porquê?… porquê em teu semblante
A pálida cor da amante
A minha ventura diz?Pois, quando eras tão vermelha
Não vinha zângão e abelha
Em torno de ti zumbir?
Não ouvias entre as flores
Histórias dos mil amores
Que não tinhas,
O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo…
Todo ele, aquele todo…
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai…»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas…
Tlim!
Ora…Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Poema de Amor
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…
A Canção do Idiota
Não me incomodam. Deixam-me ir.
Dizem que não pode acontecer nada.
Ainda bem.
Não pode acontecer nada. Tudo chega e gira
sempre em torno do Espírito Santo,
em torno de determinado espírito (tu sabes) —
que bem.Não, realmente não deve pensar-se que haja
qualquer perigo nisso.
Sim, há o sangue.
O sangue é o mais pesado. O sangue é pesado.
Por vezes penso que não posso mais —
(Ainda bem.)Ah, que linda bola;
vermelha e redonda como um Em-toda-a-parte.
Ainda bem que a criastes.
Ela vem quando se chama?De que estranha maneira tudo se comporta,
apressa-se a juntar-se, separa-se nadando:
amigável, um pouco vago.
Ainda bem.Tradução de Maria João Costa Pereira
Sete Haicais – um Poema
Este vale canta
– um pássaro fez morada
em sua garganta.O inverno me achou
lavrando a terra. Havia paz
no canto das pás.Botas de soldado
frente ao mar. – Vindes matar
até as gaivotas?Partes para a guerra.
Sim, nada digas. Ouçamos
o rio de formigas.A ideia da morte
vem-me ao colo e pede afagos
como um gato (abstracto).Ah! amigo, amigo
– além da morte, que posso
repartir contigo?Porque tudo já
foi dito, destravo a língua
no vazio, aos gritos!
Posfácio à Toca do Lobo
– Pai, vem da morte e vamos às perdizes.
Vejo a aurora, que tinge do seu rajo
de dente a dente a Serra de Soajo…
– Ciprestes, desatai-o das raízes!– Este Inverno as perdizes estão em barda:
criaram-se as ninhadas sem granizo.
Vamos chumbar dos perdigões o guizo,
anda matar securas da espingarda.A tua Holland… O animal de presa…
O azul brunido… Velha e como nova…
Bem a merecias a alegrar-te a cova.
Penou-te de saudades, com certeza.Aqui a tens. Porque era ver-te, olhá-la,
sequer um dia que não fosse vê-la.
Olha deluz-se a derradeira estrela,
já folga a luz no lustra aqui da sala.Trinta anos depois, caçar contigo,
e sempre conversando e à chalaça…
Mais que perdizes, hoje, melhor caça
É matar fomes do caçar antigo.Ver-te sorrir à escapatória sonsa
da velha que não viu «perdiz nem chasco!»
E o Lorde a anunciá-la sob o fasco,
e tu lambendo o cigarrinho de onça…Ó pai, se não vivias há trinta anos,
também há trinta eu não vivia,
Se Tudo quanto Existe…
Se tudo quanto existe
é lenta evolução,
longa transformação
sem Deus e sem mistério;
se tudo no Universo tem sentido
sem o sopro divino;
se o segredo da vida, a criação,
se explica pela ciência,
e a corrente vital
é também consequência;
se a humana consciência
é simples equação…
— que significa a vocação do eterno,
que quer dizer a aspiração do Céu
e o terror do inferno?E se acaso é o instinto a lei da vida,
se a verdade
é só necessidade
inexorável, lenta, laboriosa,que sábia explicação
tem esta frágil, esta inútil rosa?
Cenário de Natal Sem o Natal
Nenhuma estrela luz, com mais brilho no céu.
Não oiço rumor d’asa ou de vagido
É meia-noite já. E ainda não nasceu.
O que terá acontecido?Eu, para aqui ajoelhado,
A memória da infância a pedir-me alegria,
Todo o presépio armado
… E a mangedoira vazia!O silêncio apavora:
Nem uma loa, nem o som de um sino.
Porquê tanta demora?
Não mais irá nascer o meu menino?Nenhum sinal de sobrenatural
No cenário onde a fé não sublima nem arde.
Por isso, o meu Natal
Vai chegar tarde.(Para sempre tarde?)