Realidade
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos…
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto —
Nesta localidade da cidade…Há vinte anos!…
O que eu era então! Ora, era outro…
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada…Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)…
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos…
Não me lembro, não me posso lembrar.O outro que aqui passava, então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse…
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer…Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu,
Poemas Interrogativos
774 resultadosIrmão, Irmãos
Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?
Existir é Ser Possível Haver Ser
Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequena… se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
Ironias do Desgosto
“Onde é que te nasceu” – dizia-me ela às vezes –
“O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
“Por que é que não possuis a verve dos franceses
“E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?“Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
“As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
“E abrigas tanto fel no peito, que não sente
“O abalo feminil das minhas expansões?“Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
“Mas quando tentas rir parece então, meu bem,
“Que estão edificando um negro cadafalso
“E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!“Eu vim – não sabes tu? – para gozar em maio,
“No campo, a quietação banhada de prazer!
“Não vês, ó descorado, as vestes com que saio,
“E os júbilos, que abril acaba de trazer?“Não vês como a campina é toda embalsamada
“E como nos alegra em cada nova flor?
“Então por que é que tens na fronte consternada”
“Um não-sei-quê tocante e enternecedor?”Eu só lhe respondia: — “Escuta-me.
Prece do Natal
Menino Jesus
De novo nascido,
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!Vede que os humanos
Erros e cuidados
Nos são tão pesados
Como há dois mil anos.A nossa ignorância
É um fardo que arde.
Como se faz tarde
Para a nossa ânsia!Nós somos da Terra,
Coisa fria e dura.
Olhai a amargura
Que esse olhar encerra.Colai o ouvido
À alma que sofre;
Abri esse cofre
Do sonho escondido.Pegai nessa mão
Que treme de medo;
Sondai o segredo
Da minha oração.Esta pobre gente
Que mal é que fez?
Nós somos, talvez,
Um povo «inocente»…Menino Jesus
Que andais distraído
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!A mais insofrida
De tantas misérias
– Não termos mais férias
Ao longo da vida –Trocai por amenas
Manhãs sem cuidados,
Silêncios banhados
De ideias serenas;Por cantos e flores
Risonhas imagens
Macias paisagens
Felizes amores!
A Jovem Cativa
(André Chenier)
— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora: morrer não quero ainda!De olhos secos o estóico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.Deve acaso morrer ? Tranqüila durmo,
Tranqüila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.Desta bela jornada é longe o termo.
Aqui Onde se Espera
Aqui onde se espera
– Sossego, só sossego –
Isso que outrora era,Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego –
Como no exílio um rei,Gozando da ventura
– Sossego, só sossego –
De não ter a amarguraDe reinar, mas guardando
– Sossego, só sossego –
O nome venerando…Que mais quer quem descansa
– Sossego, só sossego –
Da dor e da esperança,Que ter a negação
– Sossego, só sossego –
De todo o coração ?
A um Retrato
Amo-te, flor! Se te amo, Deus que o sabe
Que o diga a teus irmãos, que o Céu povoam
E ébrios de glória cânticos entoam
A quem no mar, na Terra e Céus não cabe.Se te amo, flor! que o diga o mar que expele
Quanto é domínio, e beija humilde a praia…
Se mal que a Lua lá das ondas saia
Nas rochas me não vê gemer com ele!Amo-te, flor! Se te amo, o Sol que o diga:
Quando lá da montanha aos Céus se eleva,
Se entre os vermes do pó, que o vento leva,
Me banha a mim também na luz amiga.Se te amo, flor? Sem ti… que noite escura,
Meu céu, meu campo em flor, meu dia e tudo!
Diga-te a noite minha se te iludo,
Se em vida já sem ti sonhei ventura!O anjo que no berço humilde e escasso
Do Céu me veio alumiar piedoso
E em lágrimas e riso, pranto e gozo,
Desde então me acompanha passo a passo;És tu! Amo-te e muito!
Nunca Conheci quem Tivesse Levado Porrada
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão princípe –
Elegia do Amor
Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava,
Tempo
O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias só dum sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.E nós sorrimos,
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos.Só lá do alto do poleiro azul
o sol doirado e verde,
o fulvo papagaio
(estou bêbedo de luz,
caio ou não caio?)
nos lembra a dor do tempo que se perde.
Quando Está Frio no Tempo do Frio
Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas
O natural é o agradável só por ser natural.Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno —
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no fato de aceitar —
No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.
Melancolia
Oh dôce luz! oh lua!
Que luz suave a tua,
E como se insinua
Em alma que fluctua
De engano em desengano!
Oh creação sublime!
A tua luz reprime
As tentações do crime,
E á dôr que nos opprime
Abres-lhe um oceano!É esse céo um lago,
E tu, reflexo vago
D’um sol, como o que eu trago
No seio, onde o afago,
No seio, onde o aperto?
Oh luz orphã do dia!
Que mystica harmonia
Ha n’essa luz tão fria,
E a sombra que me guia
N’este areal deserto!Embora as nuvens trajem
De dia outra roupagem,
O sol, de que és imagem,
Não tem essa linguagem
Que encanta, que namora!
Fita-te a gente, estuda,
(Sem mêdo que se illuda)
Essa linguagem muda…
O teu olhar ajuda…
E a gente sente e chora!Ah! sempre que descrevas
A orbita que levas,
Confia-me o que escrevas
De quanto vês nas trevas,
Que a luz do sol encobre!
As victimas, que escutas,
De traças mais astutas
Que as d’essas féras brutas…
O Echo
Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
– Outra que não Ella chamára tambem por Elle.
Ai, Madre, Morro de Amor
Nom chegou, madr’, o meu amigo
e oj’est o prazo saído.
Ai, madre, moiro d’amor!Nom chegou, madr’, o meu amado
e oj’est o prazo passado.
Ai, madre, moiro d’amor!E oj’est o prazo saído!
Por que mentiu o desmentido?
Ai, madre, moiro d’amor!E oj’est o prazo passado!
Por que mentiu o perjurado?
Ai, madre, moiro d’amor!Porque mentiu o desmentido,
pesa-mi, pois per si é falido.
Ai, madre, moiro d’amor!
Este é um dos Lugares
Este é um dos lugares (ou parte alguma?)
que nunca esperei ocupar ou ver sequer;
alheio em tudo, igual a tantos outros
que breves soube e de que nada guardo.
Um só espaço em verdade me pertence,
– meu berço, meu texto, meu legado:
a casa que é a mãe e viverá
enquanto eu não abdique do seu sangue.
Lá estou e serei: sou as paredes,
a escuridão que a procura e adormece,
sublimando-a tanto como a luz,
trave do seu lar frio e seu apelo,
pelas janelas vendadas defendida.
Batei à porta, chamai do seu jardim
devastado até não me ser senão lembrança:
lá dentro, responderei, embora aqui,
desde sempre à espera de ninguém.
Jeito de Escrever
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas…
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto – o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago…
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera…Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Elegia
A alegria da vida, essa alegria d’oiro
A pouco e pouco em mim vai-se extinguindo, vai…
Melros alegres de bico loiro,
Ó melros negros, cantai, cantai!Ando lívido, arrasto o pobre corpo exangue,
Que era feito da luz das claras madrugadas…
Rosas vermelhas da cor do sangue,
Rosas abri-vos às gargalhadas!Limpidez virginal, graça d’Anacreonte,
Mimo, frescura, força, onde é que estais?… não sei!…
Ó águas vivas, águas do monte,
Ó águas puras, correi, correi!Eu sinto-me prostrado em lânguido desmaio,
E a minha fronte verga exausta para o chão…
Cedros altivos, sem medo ao raio,
Cedros erguei-vos pela amplidão!
Louvor do Revolucionário
Quando a opressão aumenta
Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce.
Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá
E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade:
Donde vens tu?
Pergunta às opiniões:
A quem aproveitais?Onde quer que todos calem
Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino
Ele nomeará os nomes.Onde se senta à mesa
Senta-se a insatisfação à mesa
A comida estraga-se
E reconhece-se que o quarto é acanhado.Pra onde quer que o expulsem, para lá
Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.Tradução de Paulo Quintela
O Mistério das Cousas
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os
homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.