Os Justos
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Poemas
2662 resultadosCampainhada
As duas ou três vezes que me abriram
A porta do salão onde está gente,
Eu entrei, triste de mim, contente –
E à entrada sempre me sorriram…
Fogo Fátuo
Enquanto caminhávamos
parei um pouco dentro de mim
e me invadiu tua brusca mocidade.
Algo em ti pungiu-me:
a teu lado, as casas,
o ar, o amigo apodreciam e
tu, sozinho, ileso pairavas no momento.
Para Voltar
A ver-te
Um só instante,
A ti,
Que és mais bela que a lua,
Antes que a manhã recolha
As estrelas
Uma a uma
E as guarde
Do outro lado do céu,Vou atravessar
O rio
Coberto de holofotes,
Que transformam o verde claro
Numa fosforescência
De água assustada.Se não me matarem
Nem me apanharem vivo,
Mantém-te alerta
Mantém alerta
O desejo mais antigo
e o mais novo.Vou passar
Do lado de fora
Da parede
Perfurada
Pelas balas:Passa-me um lenço
De seda
Com o teu perfume.Marca-o com o segredo
Dos teus lábios.
A Senhora de Brabante
Tem um leque de plumas gloriosas,
na sua mão macia e cintilante,
de anéis de pedras finas preciosas
a Senhora Duquesa de Brabante.Numa cadeira de espaldar dourado,
Escuta os galanteios dos barões.
— É noite: e, sob o azul morno e calado,
concebem os jasmins e os corações.Recorda o senhor Bispo acções passadas.
Falam damas de jóias e cetins.
Tratam barões de festas e caçadas
à moda goda: — aos toques dos clarins!Mas a Duquesa é triste. — Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
— Ao luar, sobre os tanques chora a água…
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu…Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo, e lindo,
tirar de uma viola estranhas mágoas,
pelas noites que os cravos vêm abrindo…Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes…
Certezas do Tempo
Foi de uma colina obscena que viemos,
no dia se esconde o dedo, nascemos.
Deste caminho, só o hálito
não serve aos mortos. E a recompensa,
a tua vida, quando entra
na casa e, rápido cheiro, apodrece.
Também eu propus o estrangulamento,
que o corpo ficasse fora das muralhas,
no ar
qual bule ardido.
Data
{à maneira de Eustache Deschamps)
Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negaçãoTempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidãoTempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça
Lisboa
De certo, capital alguma n’este mundo
Tem mais alegre sol e o ceu mais cavo e fundo,
Mais collinas azues, rio d’aguas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pallidas creanças,
Mais graves cathedraes – e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d’estio a flor de larangeira!A Cidade é formosa e esbelta de manhã! –
É mais alegre então, mais limpida, mais sã;
Com certo ar virginal ostenta suas graças,
Ha vida, confusão, murmurios pelas praças;
– E, ás vezes, em roupão, uma violeta bella
Vem regar o craveiro e assoma na janella.A Cidade é beata – e, ás lucidas estrellas,
O Vicio á noute sae ás ruas e ás viellas,
Sorrindo a perseguir burguezes e estrangeiros;
E á triste e dubia luz dos baços candieiros,
– Em bairos sepulchraes, onde se dão facadas –
Corre ás vezes o sangue e o vinho nas calçadas!As mulheres são vãs; mas altas e morenas,
D’olhos cheios de luz, nervosas e serenas,
Ebrias de devoções, relendo as suas Horas;
– Outras fortes, crueis, os olhos côr d’amoras,
Posfácio à Toca do Lobo
– Pai, vem da morte e vamos às perdizes.
Vejo a aurora, que tinge do seu rajo
de dente a dente a Serra de Soajo…
– Ciprestes, desatai-o das raízes!– Este Inverno as perdizes estão em barda:
criaram-se as ninhadas sem granizo.
Vamos chumbar dos perdigões o guizo,
anda matar securas da espingarda.A tua Holland… O animal de presa…
O azul brunido… Velha e como nova…
Bem a merecias a alegrar-te a cova.
Penou-te de saudades, com certeza.Aqui a tens. Porque era ver-te, olhá-la,
sequer um dia que não fosse vê-la.
Olha deluz-se a derradeira estrela,
já folga a luz no lustra aqui da sala.Trinta anos depois, caçar contigo,
e sempre conversando e à chalaça…
Mais que perdizes, hoje, melhor caça
É matar fomes do caçar antigo.Ver-te sorrir à escapatória sonsa
da velha que não viu «perdiz nem chasco!»
E o Lorde a anunciá-la sob o fasco,
e tu lambendo o cigarrinho de onça…Ó pai, se não vivias há trinta anos,
também há trinta eu não vivia,
Sangue
Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos…É só com sangue que se escrevem versos.
Sozinho
Quando eu morrer m’envolva a Singeleza,
Vá sem Pompa a caminho do coval,
Acompanhe-me apenas a tristeza
Não vá do bronze o som de val’ em val!Chore o céu sobre mim de orvalho as bagas
Luz do sol-posto fulja em seu cristal,
Cantem-me o «dorme em paz» ao longe as vagas.Gemente a viração entoe o «Amém»
Vá assim té ermas, afastadas plagas…
Lá… fique eu só!
Não volte lá ninguém!
Apoteose
Mastros quebrados, singro num mar d’Ouro
Dormindo fôgo, incerto, longemente…
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só móro…São tristezas de bronze as que inda choro –
Pilastras mortas, marmores ao Poente…
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca óro…Desci de mim. Dobrei o manto d’Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro…Findei… Horas-platina… Olor-brocado…
Luar-ânsia… Luz-perdão… Orquideas pranto…. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
– Ó pantanos de Mim – jardim estagnado…
Já quasi até Morria
Já quasi até morria
C’os olhos nos da amada.
E ela que se sentia
Não menos abrasada:
– “Ai, caro Atfes! – dizia –
Não morras inda, espera
Que eu contigo morrer também quisera”
A ânsia com que acabava
A vida, Atfes, refreia,
E, enquanto a dilatava,
Morte maior o anseia.
Os olhos não tirava
Dos do ídolo querido,
Nos quais bebia o Néctar diluído.Quando a gentil Pastora,
Sentindo já chegada
Do doce gosto a hora,
Com a vista perturbada
Disse, tremendo: – “Agora
Morre, que eu morro, amor”
– “E eu – disse ele – contigo”
Viram-se desta sorte
Os dois finos amantes
Mortos ambos de um tal corte;
E os golpes penetrantes
Desta casta de morte
Tanto lhe agradaram,
Que para mais morrer recuscitaram.
Não Digas Nada!
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecerTalvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
Também Eu Trago a Saudade
Também eu trago a saudade
nos sentidosse dissesse que não
era mentiraTambém eu perdi um cão
casas
riosMas hoje
tenho mulher
amigos
e uma saudade mais real
é que me inspira
Se Tudo quanto Existe…
Se tudo quanto existe
é lenta evolução,
longa transformação
sem Deus e sem mistério;
se tudo no Universo tem sentido
sem o sopro divino;
se o segredo da vida, a criação,
se explica pela ciência,
e a corrente vital
é também consequência;
se a humana consciência
é simples equação…
— que significa a vocação do eterno,
que quer dizer a aspiração do Céu
e o terror do inferno?E se acaso é o instinto a lei da vida,
se a verdade
é só necessidade
inexorável, lenta, laboriosa,que sábia explicação
tem esta frágil, esta inútil rosa?
Dos Restos de Velhos Tempos
Para exemplo ainda continua a Lua
Nas noites por sobre os novos edifícios;
Entre as coisas de cobre
É ela
A mais inutilizável. Já
As mães contam de animais,
Chamados cavalos, que puxavam carros.
E verdade que quando se fala de continentes
Já não são capazes de acertar com os nomes:
Pelas grandes antenas novas
Já dos velhos tempos
Se não conhece nada.Tradução de Paulo Quintela
Cenário de Natal Sem o Natal
Nenhuma estrela luz, com mais brilho no céu.
Não oiço rumor d’asa ou de vagido
É meia-noite já. E ainda não nasceu.
O que terá acontecido?Eu, para aqui ajoelhado,
A memória da infância a pedir-me alegria,
Todo o presépio armado
… E a mangedoira vazia!O silêncio apavora:
Nem uma loa, nem o som de um sino.
Porquê tanta demora?
Não mais irá nascer o meu menino?Nenhum sinal de sobrenatural
No cenário onde a fé não sublima nem arde.
Por isso, o meu Natal
Vai chegar tarde.(Para sempre tarde?)
O Natal de Minha Mãe
A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infantemas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Altaano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de músicaribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastoresmultidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contandomoedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belémum galo bate as asas um frade está de acordo
com a nossa circuncisão galinhas debicam milhode mistura com um porco a que minha avó juntava
sempre um gato para dar sorte era pretoassim íamos todos naquela figuração animada
até ao dia de Reis aí estãoum de joelhos outro em pé
e o rei preto vinha sentado nocamelo. Era o mais bonito.
depois eram filhoses o acordar de prenda nosapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia
de feirae eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que
tinha um cavalo debaixo do quartosubindo de vales descendo de montes
acompanhando a banda do carvalhal com ferrinhose roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.
Obsessão
Dentro de mim canta, intenso,
Um cantar que não é meu:
Cantar que ficou suspenso,
Cantar que já se perdeu.Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido:
Cantar que passa perdido,
Que não é meu estando em mim.Depois, sonâmbulo, sonho:
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar…
E, novamente, no sonho
Passa de novo o cantar…Sobre um lago, onde em sossego
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego…
E ao longe o cantar morreu.Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido…
E este cenário partido
Volta a voltar, repetido,
E o cantar recanta em mim.