Meu Camarada e Amigo
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigoAs canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
— mas um poeta só fala
por sofrimento total!Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Poemas sobre Razão
114 resultadosCulpabilidade
O que é o perdão?
Vivi na esperança
de o ter entre os dedos.
Quem diz que o alcança
só vive de enredos…Fiz mal? Mas a quem?
Que venham contar-me
as mágoas geradas
por meu vil desdém
e as feridas mostrar-me
na carne rasgadas.Fiz mal? Mas a quem?
Fui pedra lançada
no vosso caminho?
Barrei-vos a estrada
com traves de pinho?Só sei que
há vozes gritando
a culpa que sinto
pesar-me na alma,
há ecos cavando
a dor que pressinto
em noites de calma…Só sei que
suspensos enredos
da minha agonia,
urdida ao serão
em grande segredo,
tornaram vazia
a minha intuição.Fiz mal? Sim ou não?
Onde e quando?
Dizei-mo, dizei-mo!Eu sou como a rocha
virada prò norte,
que acolhe a rajada
em concha bem forte
e a atira prò nada…Fiz mal? Sim ou não?
Até os duendes,
escondidos e aduncos,
me negam razão.
Poema Melancólico a não sei que Mulher
Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão…
Sou Lúcido
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar…).Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
‘As normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Xácara do Infinito
Fazia papa-luaça
com lama azul dos paúis;
e embaciava a vidraça;
ou de olhos baços, azuis,
parados, largos, serenos,
como o silêncio dos mudos,
ou fitos, picos, pequenos,
venenos de ângulos agudos.Ou gargalhava estridente
como um riscar de repente
de uma faúlha de luz
em escuros de urros e uuus
que arrefecia os cabelos!
E a dissonância em novelos
rolava fundo e medonho
a meio do chão:.. Catrapuz!…
como um vómito de luz
a estoirar dentro dum sonho!Ou escancarava a vidraça
a rir pedradas de lata;
mas logo o feixe-desfeixe
porque a lata se desata
e cai em pata de pata
na lájea das cousas mortas
das mortas noites sem portas!E logo a Noite corria,
e a vista via… – não via:
porque entre o ver e o não ver
há uma distância a correr
que pode ser… – ou não ser
uma distância a valer!Aquele espaço intervalo
dum cabelo ou duma unha
à sensação de ter unha
é uma distância a cavalo
como a distância da unha
ao movimento da unha!
Escreve!
Não sei o que supor
Do teu silêncio. Escreve!
Quem é amado deve
Ser grato ao menos, flor!Se eu fosse tão feliz
Que te falasse um dia,
De viva voz diria
Mais do que a carta diz.Mas olha, tal qual é,
Não rias desse escrito,
Que pouco ou muito é dito
Tudo de boa-fé.Há nesse teu olhar
A doce luz da Lua,
Mas luz que se insinua
A ponto de abrasar…Pareça nele, sim,
Que há só doçura, embora,
Há fogo que devora…
Que me devora a mim!Que mata, mas que dá
Uma suave morte;
Mata da mesma sorte
Que uma árvore que há;Que ao pé se lhe ficou
Acaso alguém dormindo
Adormeceu sorrindo…
Porém não acordou!Esse teu seio então…
Que encantadora curva!
Como de o ver se turva
A vista e a razão!Como até mesmo o ar
Suspende a gente logo,
Pregando olhos de fogo
Em tão formoso par!
Elegia da Lembrança Impossível
O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
Escrevias pela Noite Fora
Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo.
A um Jovem Poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode serque em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheçascomo diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.
A estrada do monte
Não digas nada a ninguém
que eu ando no mundo triste
a minha amada, que eu mais gostava,
dançou, deixou-me da mão;
Eu a dizer-lhe que queria
ela a dizer-me que não
e a passarada
não se calava
cantando esta cançãoSim, foi na estrada do monte
perdi o teu grande amor
Sim ali ao pé da fonte
perdi o teu grande amorAi que tristeza que eu sinto
fiquei no mundo tão só
e aquela fonte, ficou marcada
com tanto que se chorou
Se alguém aqui nunca teve
uma razão para chorar
siga essa estrada
não diga nada
que eu fico aqui a chorarSim, foi na estrada do monte
perdi o teu grande amor
Sim ali ao pé da fonte
perdi o teu grande amor
Pensando-vos Estou, Filha
Pensando-vos estou, filha;
vossa mãe me está lembrando;
enchem-se-me os olhos d’água,
nela vos estou lavando.
Nascestes, filha, entre mágoa,
para bem inda vos seja,
que no vosso nascimento
vos houve a fortuna inveja.
Morto era o contentamento,
nenhuma alegria ouvistes;
vossa mãe era finida,
nós outros éramos tristes.
Nada em dor, em dor crescida,
não sei onde isto há de ir ter;
vejo-vos, filha, formosa,
com olhos verdes crescer.
Não era esta graça vossa
para nascer em desterro;
mal haja a desaventura
que pôs mais nisto que o erro.
Tinha aqui sua sepultura
vossa mãe, e a mágoa a nós;
não éreis vós, filha, não,
para morrerem por vós.
Não houve em fados razão,
nem se consentem rogar;
de vosso pai hei mor dó,
que de si se há de queixar.
Eu vos ouvi a vós só,
primeiro que outrem ninguém;
não fôreis vós se eu não fora;
não sei se fiz mal, se bem.
Mas não pode ser, senhora,
para mal nenhum nascentes,
com este riso gracioso
que tendes sobr’olhos verdes.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
O Amor
I
Eu nunca naveguei, pieguíssimo argonauta
Dans les fleuves du tendre, onde há naufrágios bons,
Conduzindo Florian na tolda a tocar frauta,
E cupidinhos d’oiro a tasquinhar bombons.
Nunca ninguém me viu de capa à trovador,
Às horas em que está já Menelau deitado,
A tanger o arrabil sob os balcões em flor
Dos castelos feudais de papelão doirado.
Não canto de Anfitrite as vaporosas fraldas,
(Eu não quero com isto, ó Vénus, descompor-te)
Nem costumo almoçar c’roado de grinaldas,
Nem nunca pastoreei enfim, vestido à corte,
De bordão de cristal e punhos de Alençon,
Borreguinhos de neve a tosar esmeraldas
Num lameiro qualquer de qualquer Trianon.
Eu não bebo ambrósia em taças cristalinas,
Bebo um vinho qualquer do Douro ou de Bucelas,
Nem vou interrogar as folhas das boninas,
Para saber o amor, o tal amor das Elas.
Não visto da poesia a túnica inconsútil,
Pela simples razão, sob o pretexto fútil
De ter visto passar na rua uns pés bonitos;
Nem do meu coração eu fiz um paliteiro,
Onde venha o amor cravar os seus palitos.
Gozo e Dor
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
– Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida – ou a razão.
Surdo, Subterrâneo Rio
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
– surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
Mãezinha
A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
43 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai desde o berço até à puberdade.
28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (Oh nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos…
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que, por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando,
A verdade é que fomos
A verdade é que fomos
feitos do mesmo sangue
violento e humildeA verdade é que temos
ambos a graça de compreender
todos os homens e todas as estrelasA verdade é que Deus
nos ensinou
que este é o tempo da razão ardente.Deus hoje deu-me um pouco
do que toda a vida lhe pedi
foi esta calma e simples aceitação
de que é preciso que estejas
longe de mim
para que amando eu possa conservar
o meu coração puro.As ruas hoje pareciam mais largas
e mais clarasAs casas e as pessoas
pareciam diferentesFoi só o tempo de pedir a Deus
que prolongasse o generoso engano.Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justasE fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.O amor substitui
o Sol — que tudo ilumina.Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás-de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonhaVês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua almaPor que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?
Loira
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
O que É Perfeito não Precisa de Nada
Sim, talvez tenham razão.
Talvez em cada coisa uma coisa oculta more,
Mas essa coisa oculta é a mesma
Que a coisa sem ser oculta.Na planta, na árvore, na flor
(Em tudo que vive sem fala
E é uma consciência e não o com que se faz uma consciência),
No bosque que não é árvores mas bosque,
Total das árvores sem soma,
Mora uma ninfa, a vida exterior por dentro
Que lhes dá a vida;
Que floresce com o florescer deles
E é verde no seu verdor.No animal e no homem entra.
Vive por fora por dentro
É um já dentro por fora,
Dizem os filósofos que isto é a alma
Mas não é a alma: é o próprio animal ou homem
Da maneira como existe.E penso que talvez haja entes
Em que as duas coisas coincidam
E tenham o mesmo tamanho.E que estes entes serão os deuses,
Que existem porque assim é que completamente se existe,
Que não morrem porque são iguais a si mesmos,
Que podem mentir porque não têm divisão [?]
Entre quem são e quem são,
O amor
MOTE
Amor é chama que mata,
Sorriso que desfalece,
Madeixa que desata,
Perfume que esvaece.(popular)
GLOSAS
Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão,
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.Madeixa que se desata
Denominam-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvaece.