O Amor
I
Eu nunca naveguei, pieguĂssimo argonauta
Dans les fleuves du tendre, onde hĂĄ naufrĂĄgios bons,
Conduzindo Florian na tolda a tocar frauta,
E cupidinhos d’oiro a tasquinhar bombons.
Nunca ninguém me viu de capa à trovador,
Ăs horas em que estĂĄ jĂĄ Menelau deitado,
A tanger o arrabil sob os balcÔes em flor
Dos castelos feudais de papelĂŁo doirado.
NĂŁo canto de Anfitrite as vaporosas fraldas,
(Eu não quero com isto, ó Vénus, descompor-te)
Nem costumo almoçar c’roado de grinaldas,
Nem nunca pastoreei enfim, vestido Ă corte,
De bordão de cristal e punhos de Alençon,
Borreguinhos de neve a tosar esmeraldas
Num lameiro qualquer de qualquer Trianon.
Eu não bebo ambrósia em taças cristalinas,
Bebo um vinho qualquer do Douro ou de Bucelas,
Nem vou interrogar as folhas das boninas,
Para saber o amor, o tal amor das Elas.
NĂŁo visto da poesia a tĂșnica inconsĂștil,
Pela simples razĂŁo, sob o pretexto fĂștil
De ter visto passar na rua uns pés bonitos;
Nem do meu coração eu fiz um paliteiro,
Onde venha o amor cravar os seus palitos.
Sou selvagem talvez, e sou talvez grosseiro,
Mas as cousas que sinto eu digo-as francamente:
NĂŁo quebro da friura a ĂĄgua de CastĂĄlia,
Nem a bebo panada assim como um doente.
Detesto o lamurear dum realejo de ItĂĄlia,
Detesto um maçador, detesto uma maçada,
Um discurso comprido, uma bota apertada,
E uma unha raspando a cal duma parede;
Detesto o pedantismo, a hidrofobia, e crede
Que detesto também com infinita zanga
As paisagens, horror! bordadas a missanga,
Que a provĂncia fabrica, e que Lisboa admira;
Detesto duma letra o prazo, quando expira,Detesto intimamente a carta de conselho,
Detesto o calembour, como um toiro o vermelho,
E detesto da morte os pĂĄlidos umbrais;
Detesto os folhetins que escrevo nos jornais,
Detesto Tito LĂvio e detesto os venenos,
Mas detesto tudo isso ainda muito menos
Do que a sensiblerie, a doce musa antiga,
Que passou de ser musa a ser uma lombriga.
Eu não subo, é verdade, a calçada do Combro,
De bengala na mĂŁo e de madeiro ao ombro,
Como um Cristo-Romeu, como um Jesus-Manfredo;
NĂŁo me chamo Lindor, nem Artur, nem Alfredo,
E nem recito ao piano, o que parece incrĂvel;
Mas enfim eu nĂŁo sou um cofre incombustĂvel,
Eu sou um homem também, eu também sinto e vivo,
Tenho o meu coração no lugar respectivo,
Admiro um corpo airoso e fino e delicado,
Sou como toda a gente um bacharel formado,
E posso dar por isso a minha opiniĂŁo
Sobre o amor â essa eterna, essa imortal canção.II
O amor feito petisco e brisa e filomela,
Ao próprio coração pondo uma manivela
De realejo, e passando uma existĂȘncia falsa
A traduzir em polca, em hino, em guincho, em valsa
As guerras do alecrim e mais da manjerona,
MoĂdas como cafĂ© nessa imortal sanfona;
O amor sem a paixĂŁo fremente, esplendorosa,
O amor literatice, o amor licor de rosa,
Lacoonte de biscuit, torcendo-se aos corcovos
Nas doces espirais duma lampreia d’ovos;
O amor açucarado, o amor amor-perfeito,
De tristeza na fronte e de vulcĂŁo ao peito,
A rouxinolizar um berimbau d’alquime;
O amor de barba intensa, o velho amor sublime
Dos precitos, aos quais a desventura alquebra,
Mussets de botequim que vĂŁo beber genebra
Sobre o cairel do abismo Ă s horas do sol pĂŽr;
O amor que se derrete, o florianesco amor,
De conceitos gentis, subtis, que eu não destrinço,
â Um amor sustentado a beijos e a painço,
Que suspira e soluça e chora e gargareja
Ă noite na varanda e de manhĂŁ na igreja;
O amor que passa a vida a celebrar as bodas
Co’a Ela que contĂ©m em si as elas todas;
O amor com a tristeza aérea dum arcanjo,
Mas arrastando sempre, insĂpido marmanjo,
Das asas de flanela a franja inocentĂssima;
O amor bijutaria, o amor pomada alvĂssima,
Enfim, o terno amor, o puro amor ideal,
O amor sem sentimento â o amor sentimental,â
Oh, esse amor detesto-o, e entrego-o com delĂcia
Ăs bengalas dos pais e Ă s unhas da polĂcia.III
Mas quando o amor se torna em paixĂŁo verdadeira,
Puro como uma hĂłstia erguida sobre o altar,
Quando um amor domina uma existĂȘncia inteira
Como a Lua domina os vagalhÔes do mar;
Quando Ă© o amor radiante, esplĂȘndido, que arvora
Em nossos coraçÔes um pavilhĂŁo d’aurora
Desdobrado no azul, quando Ă© o amor profundo,
Um amor que nos veste uma rija armadura
Para se atravessar a batalha do mundo,
Como um leĂŁo atravessa uma floresta escura;
EntĂŁo adoro o amor, de joelhos, como adora
No topo da montanha um Ăndio o Sol doirado,
Porque um amor candente Ă© uma hĂłstia d’aurora,
E o peito que o encerra Ă© um sacrĂĄrio estrelado!