Se ao Mundo Predissesses teu Morrer
Se ao mundo predissesses teu morrer
na morte a natureza ir-te-ia à frente
volvendo com mandado intransigente
no eterno esquecimento o próprio serO céu se rosaria docemente
por do teu corpo a roupa enfim descer
florestas tingiria o teu sofrer
de negro e a noite o mar barca silenteLuto sem nome com estrelas mede
a estela ao teu olhar no arco celeste
e a escuridão de espesso muro impedeque a luz da nova primavera preste
A estação vê nos astros que pararam
as cisternas que a morte te espelharam.Tradução de Vasco Graça Moura
Passagens sobre Mar
921 resultadosOs Olhos Meus dali Dependurados
Os olhos meus dali dependurados,
Pergunto ao mar, às ondas, aos penedos
Como, quando, por quem foram criados?Respondem-me em segredo, mil segredos,
Cujas letras primeiras vou cortando
Nos pés de outros mais verdes arvoredos.Assi com cousas mudas conversando,
Com mais quietação delas aprendo,
Que de outras, que ensinar querem falando.Se pelejo, se grito, se contendo
Com armas, com razões com argumentos,
Elas só com calar ficam vencendo.Ferido de tamanhos sentimentos
Fico fora de mim, fico corrido
De ver sobre que fiz meus fundamentos.
Se Perguntas Onde Fui
Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.2
O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?Quem mudará em mim,
se não sei mudar?3
Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.
Sentimento do Tempo
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Até mesmo para quem passou toda uma vida no mar, chega uma idade em que se deixa a embarcação.
Os Dois
Aos pobres
— Minha mãe, minha mãe, quanta grandeza
Nesses plácidos, quanta majestade;
Como essa gente há de viver, como há de
Ser grande sempre na feliz riqueza.Nem uma lágrima sequer — e à mesa
D’entre as baixelas, d’entre a imensidade
Da prata e do ouro — a azul felicidade
Dos bons manjares de ótima surpresa.Nem um instante os olhos rasos d’água,
Nem a ligeira oscilação da mágoa
Na vida farta de prazer, sonora.— Como o teu louco pensamento expandes
Filho — a ventura não é só dos grandes
Porque, olha, o mar também é grande e… chore!
No Mar em que de Novo Amor me Guia
No mar em que de novo amor me guia,
O mais seguro porto é dar à costa;
Aonde todos se perdem, aí está posta
Minha salvação, aí me salvaria.Só fé me há-de salvar nesta porfia
Do vento, que contrário vem de aposta;
E pois sua mor perda é dar à costa
Comigo, eu com Costa me queria.Que vai já o querer, aonde a ventura
Criou tão desigual merecimento?
Valha-me pura fé, vontade pura!Valha-me navegar meu pensamento
Com tal estrela, cuja formosura
Abranda o duro mar de meu tormento.
Frémito do Meu Corpo a Procurar-te
Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas…E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas…
Praia
De repente esse sussurro
de vozes no vento
e não é o mar que fala.De repente essa esperança
e não vem das pedras.De repente o ar se enche
de vozes
e não é a noite que fala.O mar escuta.
Somos navegantes num mar que não conhecemos; que Ele conserve sempre nossa coragem em aceitar esse mistério.
Qualquer um pode tomar o leme quando o mar está calmo.
Meridional
Cabelos
Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Soneto Do Amor Como Um Rio
Este infinito amor que um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo,
Eu já não cria que existisse mais.Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermoE que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.
O mar, o mar, sempre recomeçado!
Finda
A conclusão de tudo é só a morte
e não há mais epílogo nem finda.
Não se termina o verso nem o curso
mudamos à conversa interrompida.Não findamos o verso nem acaba
o desfazer-se o mar contra esta praia.
A conclusão de tudo é só a morte,
nem o silêncio quebra a sua amarra.Sequer há conclusão? Sequer há morte
nas palavras deixadas pelos recantos
mais sujos e perdidos do seu norte?Amor que nos moveu no desalento,
a pátria destes versos foi só pura
imaginação por dentro da memória.(Mas já outras canções nos estremecem:
longe do coração começa a História.)
A Água
Eu fui a sombra a converter-se em luz,
E fui a névoa a transformar-se em cor,
E fui o pranto a consagrar a dor,
Quando brilhei nos olhos de Jesus.E fui a nuvem a buscar a altura,
E recebi do Sol a cor da chama.
Caí na terra e converti-me em lama
Para a tornar melhor e menos dura!Fui pranto de perdão e de humildade…
E foi nuns olhos cheios de saudade
Que mais linda me fiz e desejei!…E fui rio… e fui mar… e onda… e espuma…
E, em sonho de Poetas, fui à bruma…
O vago… o indeciso… o que não sei….
Soneto XXXXI
Quando as cerúleas ondas no mar alto,
Co’ a branda viração quieto e manso,
Que empolando-se vão de lanço em lanço,
Prognosticam dos ventos bravo assalto,Os Delfins, com ligeiro e leve salto,
Buscam do melhor porto o mor descanso,
Passando a tempestade em seu remanso
Já livres de temor e sobressalto.O bravo mar, é este bravo mundo,
Os Delfins, todos nós que nele andamos,
As religiões, seguros mansos portos.Para eles deste mar nos acolhamos,
Antes que em seu abismo alto e profundo
Soçobrados fiquemos, despois mortos.
Camões IV
Um dia, junto à foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.E esse que foi às ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
Língua, história, nação, armas, poesia,Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.
Se a vida fosse bela, todo dia teria sol, todo mar teria onda, toda música seria reggae e toda fumaça faria a cabeça.
Vénus
I
À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.O seu esboço, na marinha turva…
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando…E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.II
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina…
_ Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
_ Ó fúlgida visão, linda mentira!Róseas unhinhas que a maré partira…
Dentinhos que o vaivém desengastara…