Existir é Ser Possível Haver Ser
Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequena… se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
Poemas
2662 resultadosIronias do Desgosto
“Onde é que te nasceu” – dizia-me ela às vezes –
“O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
“Por que é que não possuis a verve dos franceses
“E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?“Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
“As sombras dum jazigo e as fundas abstrações,
“E abrigas tanto fel no peito, que não sente
“O abalo feminil das minhas expansões?“Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
“Mas quando tentas rir parece então, meu bem,
“Que estão edificando um negro cadafalso
“E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!“Eu vim – não sabes tu? – para gozar em maio,
“No campo, a quietação banhada de prazer!
“Não vês, ó descorado, as vestes com que saio,
“E os júbilos, que abril acaba de trazer?“Não vês como a campina é toda embalsamada
“E como nos alegra em cada nova flor?
“Então por que é que tens na fronte consternada”
“Um não-sei-quê tocante e enternecedor?”Eu só lhe respondia: — “Escuta-me.
Primeira Palavra
Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo
Engrinalda-me com os Teus Braços
Teu corpo de âmbar, gótico, afilado,
Sempre velado de cheirosos linhos,
Teu corpo, aprilino prado,
Por onde o meu desejo, pastor brando,
Risonho há-de viver, pastoreando
Meus beiços, desinquietos cordeirinhos,
Teu corpo é esbelto, ó zagaia esguia,
Como as harpas que o pai de Salomão tangia!Teu corpo eléctrico, ogival,
Núbil, sequinho, perturbante,
É uma dispensa real:
Os teus olhos são duas cabacinhas
Cheias dum vinho estonteante
Os teus dentes são alvas camarinhas,
Os teus dedos, suavíssimos espargos,
E os teus seios, pêssegos verdes mas não amargos.Lira de nervos, glória das trigueiras,
Como tu és graciosa! As laranjeiras,
Desde que viste o sol com esses sóis amados,
Só vinte vezes perfumaram noivados!
Nobre e graciosa és, morena das morenas,
Como as senhoras de olhos belos,
Que passeavam nos jardins de Atenas
Com uma cigarra de ouro nos cabelos!Como tu, eu sou moço! e atrevido
Com Anceu, rei de Samos,
E jamais caçador me fez vencido,
Quando, caçando o javali, ando entre os ramos.
O meu peito é de jaspe,
a teia do olhar
as duas mãos no rosto
descrevo-te o silêncio sob os lábios
juntos
agora celebrando as delicadas sedes
e rindo sobre a haste
onde a saliva tardao tacto é uma arma onde o esplendor devora
os sinuosos dedos
e paira sobre o ardor
onde incendeio os pulsoso amor é uma dança
a demolir-me o peito
Descalça vai para a fonte
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.
Leve, Leve, o Luar
Leve, leve, o luar de neve
goteja em perlas leitosas,
o luar de neve e tão leve
que ameiga o seio das rosas.E as gotas finas da etérea
chuva, caindo do ar,
matam a sede sidéria
das coisas que embebe o luar.A luz, oh sol, com que alagas,
abre feridas, e a lua
vem pôr no lume das chagas
o beijo da pele nua.
Fiz um conto para me embalar
Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.
Gostava de Gostar de Gostar
Gostava de gostar de gostar.
Um momento… Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua… Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel…
Tatuagem
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lavaEu quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo te alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teo braço
Repousa frouxa, murcha, farta
Morta de cansaçoEu quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Eu quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, ferro e fogo
Em carne vivaCorações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo mas não sentes
Aleluia
Era a mulher — a mulher nua e bela,
Sem a impostura inútil do vestido
Era a mulher, cantando ao meu ouvido,
Como se a luz se resumisse nela…
Mulher de seios duros e pequenos
Com uma flor a abrir em cada peito.
Era a mulher com bíblicos acenos
E cada qual para os meus dedos feito.
Era o seu corpo — a sua carne toda.
Era o seu porte, o seu olhar, seus braços:
Luar de noite e manancial de boda,
Boca vermelha de sorrisos lassos.
Era a mulher — a fonte permitida
Por Deus, pelos Poetas, pelo mundo…
Era a mulher e o seu amor fecundo
Dando a nós, homens, o direito à vida!
Natal Divino
Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo
Na fogueira.O mito apenas velado
Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
Vi os Magos galopar…
Prece do Natal
Menino Jesus
De novo nascido,
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!Vede que os humanos
Erros e cuidados
Nos são tão pesados
Como há dois mil anos.A nossa ignorância
É um fardo que arde.
Como se faz tarde
Para a nossa ânsia!Nós somos da Terra,
Coisa fria e dura.
Olhai a amargura
Que esse olhar encerra.Colai o ouvido
À alma que sofre;
Abri esse cofre
Do sonho escondido.Pegai nessa mão
Que treme de medo;
Sondai o segredo
Da minha oração.Esta pobre gente
Que mal é que fez?
Nós somos, talvez,
Um povo «inocente»…Menino Jesus
Que andais distraído
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!A mais insofrida
De tantas misérias
– Não termos mais férias
Ao longo da vida –Trocai por amenas
Manhãs sem cuidados,
Silêncios banhados
De ideias serenas;Por cantos e flores
Risonhas imagens
Macias paisagens
Felizes amores!
A Canção da Vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio…
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí…
como um salso chorando
na beira do rio…
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
Quanta Tristeza e Amargura
Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a ‘streita vida!
Quanto Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anônimo, e entra
Na morte como em casa;
Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
Braços que se desfazem
A um céu inexistente.
A Jovem Cativa
(André Chenier)
— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora: morrer não quero ainda!De olhos secos o estóico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tímida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel não deixa um travo de desgosto?
Que mar não incha a um temporal desfeito?Tu, fecunda ilusão, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisão do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.Deve acaso morrer ? Tranqüila durmo,
Tranqüila velo; e a fera do remorso
Não me perturba na vigília ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado júbilo.Desta bela jornada é longe o termo.
Aqui Onde se Espera
Aqui onde se espera
– Sossego, só sossego –
Isso que outrora era,Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego –
Como no exílio um rei,Gozando da ventura
– Sossego, só sossego –
De não ter a amarguraDe reinar, mas guardando
– Sossego, só sossego –
O nome venerando…Que mais quer quem descansa
– Sossego, só sossego –
Da dor e da esperança,Que ter a negação
– Sossego, só sossego –
De todo o coração ?
Ditosos a quem Acena
MARINHA
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena…
Eu sofro sem pena a vida.Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
Sou Eu
Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
O Amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.E levito, voo de semente,