Retórica da Paisagem
O que se pede da poesia? Que nos entretenha os olhos
com as rendas sulfurosas de um doentio crepúsculo?
Com efeito, no poema, as palavras não nos servem
de cestos em que se recolham – dilatados, quase
a cair das árvores – os frutos. E contudo, continuamos
a confundir os caminhos do poema com os do mundo
quando eles, na natureza, apenas nos apontam
a incerteza do destino. As palavras repetem-se –
frutos atirados sobre a mesa – e a morte,
para quem não acredita no poder de transfiguração
das metáforas, esgota da vida todo o sentido.
Diz-se: os ramos não crescem no quadro,
os pássaros deixam de assolar a paisagem –
e o pensamento, ao reflectir-se, deixa a tela
pejada dos restos em que se perdeu pelo
horizonte. Mas todo o conhecimento
acaba no ponto em que o voo se
confunde com a linha acidentada da planície.
Poemas sobre Palavras
299 resultadosPernoitas em Mim
pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória… amas
ou finges morrerpressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelasé noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das avesjá não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes
Dá-me as Tuas Mãos
As mãos foram feitas
para trazer o futuro,
encurtar a tristeza, encher
o que fica das mãos
de ontem – intervalos
(duros, fiéis) das palavras,
vocação urgente
da ternura, pensamento
entreaberto até
aos dedos longos
pelas coisas fora
pelos anos dentro.
Quanto Sinto, Penso
Severo narro. Quanto sinto, penso.
Palavras são idéias.
Múrmuro, o rio passa, e o que não passa,
Que é nosso, não do rio.
Assim quisesse o verso: meu e alheio
E por mim mesmo lido.
Responso
I
Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.II
É loura como as doces escocesas,
Duma beleza ideal, quase indecisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seu pecados.III
Alta noite, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansíssimas do lago.Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.IV
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.V
E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos
Ai o meu pobre filho, que rico que é
ai o meu rico filho, que pobre que é
Nascidos do mesmo ventre
Um vive de joelhos pró outro passar à frente
E esta velha mãe para aqui já no sol poenteUm dia há muito tempo, vi-os partir
levando cada um do outro o porvir
Seguiram pela estrada fora
Um voltou-se para trás, disse adeus que me vou embora
Voltaremos trazendo connosco a vitóriaDe que vitória falas, disse eu então
Da que faz um escravo do teu irmão?
Ou duma outra que rebenta
como um rio de fúria no peito feito tormenta
quando não há nada a perder no que se tenta?Passaram muitos anos sem mais saber
nem por onde passavam, nem se por ter
criado os dois no mesmo chão
eram ainda irmãos, partilhavam ainda o pão
E o silêncio enchia de morte o meu coraçãoDepois vieram novas que o que vivia
da miséria do outro, se enriquecia
Não foi para isto que andei
dias que foram longos e noites que não contei
a lutar pra ter a justiça como leiÀs vezes rogo pragas de os ver assim
Sinto assim uma faca dentro de mim
Sei que estou velha e doente
Mas para ver o mundo girar de modo diferente
Ainda sei gritar,
Hino à Solidão
Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma nunca
Se encontra só; a Alma é um mundo, um mundo
[aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.Mundo vasto que mil existências povoam:
Imagens, concepções, formas do sentimento,
— Sonhos puros que nele em beleza revoam
E ficam a brilhar, sóis do seu firmamento.Dia a dia, hora a hora, o Pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vai germinar na Palavra,
Cantar no Som, flores na Cor, sorrir na Pedra!Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso criador,
Da Glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um deus no seu mundo interior.E que mundo sublime, esse em que ele se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo criou,
Sem outra Palavra para Mantimento
Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.
Timidez
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve. . .— mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes..— palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,— que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando…— e um dia me acabarei.
Que Diremos Ainda?
Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras?, este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?Palavras, não. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.
Do meu vagar
Já não há mais o vagar
de quando se comia sentado
e devagar se caminhava
até chegar a qualquer lado
agora vai toda a gente
sempre de mão na buzina
sempre na linha da frente
a tremer de adrenalinaDo meu vagar não traço rotas
não tenho trilho que me prenda
não tiro dados nem notas
não encho uma linha de agenda
do meu vagar não chego a Meca
não faço nada num só dia
não corto a fita da meta
não vejo Roma nem PaviaDo meu vagar
sei que nunca hei-de ir longe
vou aonde for preciso
vou indo do meu vagar
em busca do tempo perdido
e se um dia o encontrar
o longe não faz sentidoDo meu vagar há um nicho
um pico de ilha insubmersa
onde há lugar para o capricho
que dá pelo nome de conversa
do meu vagar a paisagem
ainda tem beleza em bruto
e vale mais uma palavra
que mil imagens por minutoDo meu vagar
sei que nunca hei-de ir longe
vou aonde for preciso
vou indo do meu vagar
em busca do tempo perdido
e se um dia o encontrar
o longe não faz sentido
Hino à Alegria
Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta,
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar.Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quase meiga, apesar do seu riso constante,
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante…Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra,
Sem que dele irradie um facho criador.Quando menos se espera, irrompe de improviso;
Mas foge-nos também com uma presteza igual;
E dela apenas fica um pálido sorriso
Traduzindo o desdém duma ilusão banal.Onda mansa que só à superfície corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda!No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir,
I Was Made To Love Magic
A manhã com as suas proibições
na tua fala. A claridade estava a crescer
numa cama que já se tinha atravessado no escuro
como uma nave enfileirando para a guerra.Eu não tinha ficado para conhecer a vista
das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas
mas não cheguei a levantar as persianas.
Talvez fosse um sítio ao qual não se pudesse regressar
porque quando falávamos os nossos olhos
não coincidiam com nenhuma palavra.Teria gostado de te levar comigo outra vez
mas era difícil recuperar as razões
para o desejo. E no caso de nos ter acontecido
uma mudança, onde é que havíamos de procurar
os seus indícios? Estavas a dar de comer aos peixes
e eu só falava em livros.
Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muroPelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusávelE pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas– Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centroMe dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo
Com Fúria e Raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavrasPois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiadaDe longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disseCom fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
A Noite de Pavese
Raras vezes me franquearam a porta
e me deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,
o estremecimento que corre nos meus ombros.
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.
E quando entro nas casas os meus gestos
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática
que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida ou de morte
vem comigo. Obviamente, eu abençoo
quem me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra
próxima do amor, um dedo nos cabelos
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem
com as inefáveis sombras que vejo nos outros
e tento decifrar para meu contentamento.
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.
Às Vezes Tenho Idéias Felizes
Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que naturalmente se despegam…Depois de escrever, leio…
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu…
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?…
A Taça
Uma taça cheia, bem lavrada,
Segurava e apertava nas mãos ambas,
Ávido sorvia do seu bordo doce vinho
Para, a um tempo, afogar mágoa e cuidado.Entrou o Amor e achou-me sentado,
E sorriu discreto e sábio,
Como que lamentando o insensato:«Amigo, eu conheço um vaso inda mais belo,
Digno de nele mergulhar a alma toda;
Que prometes, se eu to conceder
E to encher de outro néctar?»E com que amizade ele cumpriu a palavra!
Pois ele, Lida, com suave vénia
Te concedeu a mim, há tanto desejoso.Quando estreito o teu amado corpo
E provo dos teus lábios fidelíssimos
O bálsamo de amor longo tempo guardado,
Feliz digo eu então ao meu espírito:Não, um vaso tal, a não ser o Amor,
Nenhum deus o formou ou possuiu!
Formas assim não as forja Vulcano
Cos martelos finos e sensíveis!
Pode Lieu em frondosos outeiros
P’los seus faunos mais velhos e sagazes
Fazer pisar as uvas escolhidas
E ele mesmo presidir ao fermentar secreto:
Bebida assim não há desvelo que lha dê!
Referência do Sonho
Não sei se vão os meus olhos,
não sei se vem a paisagem.Quero a luz absoluta
mãe das águas do tempo:
quero deter o seu curso
no eterno presente.Com unção aproximo-me do altar invertido
de um deus embriagado pelo sangue
de homens acusados de morte.
Tateando nas trevas vou buscando
a primordial pureza, o primordial sentido,
a primordial palavra liturgicamente expressa.
Saudade
Saudade – O que será… não sei… procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe – tão longe! – de minhas redes tranquilas.Saudade… Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não… e me treme na boca seu tremor delicado…
Saudade…
Tradução de Rui Lage