Poemas sobre Vento de José Jorge Letria

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Poemas de vento de José Jorge Letria. Leia este e outros poemas de José Jorge Letria em Poetris.

A Minha Saudade Tem o Mar Aprisionado

A minha saudade tem o mar aprisionado
na sua teia de datas e lugares.
É uma matĂ©ria vibrĂĄtil e nostĂĄlgica
que nĂŁo consigo tocar sem receio,
porque queima os dedos,
porque fere os lĂĄbios,
porque dilacera os olhos.
E nĂŁo me venham dizer que Ă© inocente,
passiva e benigna porque nĂŁo posso acreditar.
A minha saudade tem mulheres
agarradas ao pescoço dos que partem,
crianças a brincarem nos passeios,
amantes ocultando-se nas sebes,
soldados execrando guerras.
Pode ser uma casa ou uma rede
das que nĂŁo prendem pĂĄssaros nem peixes,
das que tĂȘm malhas largas
para deixar passar o vento e a pressa
das ondas no corpo da areia.
Seria hipĂłcrita se dissesse
que esta saudade nĂŁo me vem Ă  boca
com o sabor a fogo das coisas incumpridas.
Imagino-a distante e extinta, e contudo
cresce em mim como um distĂșrbio da paixĂŁo.

O Cerimonial das MĂŁos

MĂŁe, onde foi que deixaste a outra metade,
a que anunciava o sol na turvação das noites,
a que iluminava a sombra no cerimonial das mĂŁos?
Em que cĂŽncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projectada
para fora de mim como um sonho evadindo-se
do cĂ­rculo de medos em que a fĂșria se jogava?
Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava Ă  revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa,
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe, eu pedia uma trégua ao vento
e um punhal Ă  chuva e com ambos queria
separar de mim a metade incandescente
que Ă  beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.
MĂŁe, eu vejo-me outro nesta cama
que guarda os instrumentos liquefeitos da insĂłnia
e sei que nĂŁo sou eu quem lĂĄ estĂĄ,

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Ode ao Gato

Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silĂȘncio branco da cinza,
pois nĂłs temos fĂŽlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva Ă  glĂłria ou Ă  morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

Ode aos Natais Esquecidos

Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memĂłria
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecĂ­veis.
Tinha comigo os cĂŁes e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidĂŁo dos quartos,
os cadernos invadidos pĂȘlos saberes inĂșteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava jĂĄ dentro do sono,
no territĂłrio dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingĂ­vel a clamar pela nossa paciĂȘncia,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma ĂĄrvore sem nome.

Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusÔes também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,

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