Cá nesta Babilónia
Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vĂŁo
Às portas da Cobiça e da Vileza;Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
VĂŞ se me esquecerei de ti, SiĂŁo!
Sonetos sobre Amor de LuĂs de Camões
91 resultadosEnquanto Quis Fortuna Que Tivesse
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juĂzo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos nĂŁo dissesse.Ă“ vĂłs que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tĂŁo diversos,verdades puras sĂŁo, e nĂŁo defeitos…
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
Se, Despois D’esperança TĂŁo Perdida
Se, despois d’esperança tĂŁo perdida,
Amor pola ventura consentisse
que inda algĂĽ’hora breve alegre visse
de quantas tristes viu tĂŁo longa vida;ĂĽ’alma já tĂŁo fraca e tĂŁo caĂda,
por mais alto que a sorte me subisse,
nĂŁo tenho para mim que consentisse
alegria tĂŁo tarde consentida.NĂŁo tĂŁo somente Amor me nĂŁo mostrou
um’hora em que vivesse alegremente,
de quantas nesta vida me negou;mas inda tanta pena me consente,
que co contentamento me tirou
o gosto de algĂĽ’hora ser contente.
Imagens sĂŁo adonde Amor se Adora
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juĂzo sossegado,
Se o Menino, que de olhos Ă© privado,
Nas Meninas dos vossos olhos mora?Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que vivo lume, e o rosto delicado,
Imagens sĂŁo adonde Amor se adora.Quem vĂŞ que em branca neve nascem rosas
Que crespos fios de ouro vĂŁo cercando?
Se por entre esta luz a vista passa,Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estĂŁo no peito traspassando,
Assim como um cristal o Sol traspassa.
Em Prisões Baixas Fui Um Tempo Atado
Em prisões baixas fui um tempo atado,
vergonhoso castigo de meus erros;
inda agora arrojando levo os ferros
que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
que Amor nĂŁo quer cordeiros, nem bezerros;
vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
parece me que estava assi ordenado.Contentei me com pouco, conhecendo
que era o contentamento vergonhoso,
sĂł por ver que cousa era viver ledo.Mas minha estrela, que eu já’gora entendo,
a Morte cega, e o Caso duvidoso,
me fizeram de gostos haver medo.
Converteu-se-me em Noite o Claro Dia
Apolo e as nove Musas, descantando
Com a dourada lira, me influĂam
Na suave harmonia que faziam,
Quando tomei a pena, começando:Ditoso seja o dia e hora, quando
TĂŁo delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
Estar-se em seu desejo traspassando!Assim cantava, quando Amor virou
A roda à esperança, que corria
TĂŁo ligeira, que quase era invisĂvel.Converteu-se-me em noite o claro dia;
E, se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possĂvel.
Em Fermosa Leteia Se Confia
Em fermosa Leteia se confia,
por onde vaidade tanta alcança,
que, tornada em soberba a confiança,
com os deuses celestes competia.Porque nĂŁo fosse avante esta ousadia
(que nascem muitos erros da tardança),
em efeito puseram a vingança,
que tamanha doudice merecia.Mas Oleno, perdido por Leteia,
nĂŁo lhe sofrendo Amor que suportasse
castigo duro tanta fermosura,quis padecer em si a pena alheia;
mas, porque a morte Amor nĂŁo apartasse,
ambos tornados sĂŁo em pedra dura.
Já A Saudosa Aurora Destoucava
Já a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos d’ouro delicados,
e as flores, nos campos esmaltados,
do cristalino orvalho borrifava;quando o fermoso gado se espalhava
de SĂlvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados,
de quem o mesmo Amor não se apartava.Com verdadeiras lágrimas, Laurente,
-NĂŁo sei (dizia) Ăł Ninfa delicada,
porque não morre já quem vive ausente,pois a vida sem ti não presta nada?
Responde SĂlvio:-Amor nĂŁo o consente,
que ofende as esperanças da tornada.
A Morte, Que Da Vida O NĂł Desata
A Morte, que da vida o nĂł desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na AusĂŞncia, que Ă© contr’ ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
ĂĽa Ă© RazĂŁo contra a Fortuna austera,
outra, contra a RazĂŁo, Fortuna ingrata.Mas mostre a sua imperial potĂŞncia
a Morte em apartar dum corpo a alma,
duas num corpo o Amor ajunte e una;porque assi leve triunfante a palma,
Amor da Morte, apesar da AusĂŞncia,
do Tempo, da RazĂŁo e da Fortuna.
Aquela Que, De Pura Castidade
Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança,
contrária a sua honra e qualidade(venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança
porque ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade!),de si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !
Que, dando breve morte ao corpo humano,
tenha sua memĂłria larga vida!
Vencido está de amor
Vencido está de amor Meu pensamento
O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e InstituĂda,
Oferecendo tudo A vosso intento.Contente deste bem, Louva o momento
Outra vez renovar TĂŁo bem perdida;
A causa que me guia A tal ferida,
Ou hora em que se viu Seu perdimento.Mil vezes desejando Está segura
Com essa pretensĂŁo Nesta empresa,
TĂŁo estranha, tĂŁo doce, Honrosa e altaVoltando sĂł por vĂłs Outra ventura,
Jurando nĂŁo seguir Rara firmeza,
Sem ser no vosso amor Achado em falta.