Perdi-me Dentro em Mim
Perdi-me dentro em mim, como em deserto,
Minha alma está metida em labirinto,
Contino contradigo o que consinto,
Cem mil discursos faço, em nada acerto.Vejo seguro o dano, o bem incerto;
Comigo porfiando me desminto,
O que mais atormenta, menos sinto,
O que me foge, quando está mais certo.E se as asas levanta o pensamento
Àquela parte, onde está escondida
A causa deste vario movimento,Transforma-se por não ser conhecida,
Porque quer a pesar do sofrimento
Pôr as armas da morte em mão da vida.
Sonetos sobre Certos
52 resultadosVós Outros, Que Buscais Repouso Certo
Vós outros, que buscais repouso certo
na vida, com diversos exercícios;
a quem, vendo do mundo os benefícios,
o regimento seu está encoberto;dedicai, se quereis, ao desconcerto
novas hontas e cegos sacrifícios;
que, por castigo igual de antigos vícios,
quer Deus que andem as cousas por acerto.Não caiu neste modo de castigo
quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente
crê que acontecimentos há no mundo.A grande experiência é grão perigo;
mas o que a Deus é justo e evidente
parece injusto aos homens e profundo.
Soneto V
Qual Hércules estrela já mudado,
Que quando se quer pôr ao tempo certo,
Cabeça e corpo todo já coberto,
Fica só pelos pés dependurado,Tal c’ua grave dor, grave cuidado
Que o coração me tem de todo aberto,
Perdida a razão já, de meu fim perto
Me vejo agora em semelhante estado.Mas ai! paixão penosa, que além passas,
Que este, enfim, não é sempre no Céu visto,
Ainda que dos pés se ponha tarde.E tu, como meu mal e morte traças,
És qual a mão do filho de Calisto,
Que em todo [o] tempo ao mar cintila e arde.
Esforço Grande, Igual Ao Pensamento;
Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos em obras divulgados,
e não em peito timido encerrados
e desfeitos despois em chuva e vento;animo da cobiça baixa isento,
dino por isso só de altos estados,
fero açoute dos nunca bem domados
povos do Malabar sanguinolento;gentileza de membros corporais,
ornados de pudica continência,
obra por certo rara de natura:estas virtudes e outras muitas mais,
dinas todas da homérica eloquência,
jazem debaixo desta sepultura
Mistério
À memória do pequeno Alberto.
Sei que tu’alma carinhosa e mansa
Voou, sorrindo, para o Azul celeste;
Sei que teu corpo virginal descansa
Aqui da terra n’um cantinho agreste.Tudo isto sei: mas tu não me disseste
Se lá no Céu, na pátria da Esperança,
Ou aqui no mundo, à sombra do cipreste,
Deixaste o coração, loura criança!Desceu acaso com o corpo à terra
Ele tão puro e que só luz encerra?
Não creio n’isso e ninguém crê de certo…Entanto, eu cismo que, num vale ameno,
Talvez o seio de um jasmim pequeno
Sirva de berço ao coração de Alberto.
7A Sombra – Dulce
Se houvesse ainda talismã bendito
Que desse ao pântano – a corrente pura,
Musgo – ao rochedo, festa – à sepultura,
Das águias negras – harmonia ao grito…,Se alguém pudesse ao infeliz precito
Dar lugar no banquete da ventura…
E tocar-lhe o velar da insônia escura
No poema dos beijos – infinito…,Certo. . . serias tu, donzela casta,
Quem me tomasse em meio do Calvário
A cruz de angústias que o meu ser arrasta!. . .Mas ,se tudo recusa-me o fadário,
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz de teu rosário!…
Canto Efêmero
Feliz no mundo eu só!… Ninguém mais é feliz!
Ninguém mais é feliz!… Eu só, sorrio e canto!
Enfim o teu amor!… Quanta coisa! Quem diz,
– quem poderia crer que eu merecesse tanto!Esplendor! a paisagem mudou por encanto!
No negro da minha alma há rabiscos de giz
traçando ante meus olhos trêmulos de espanto.
-“Feliz no mundo, eu só!… Ninguém mais é feliz!”Certo do teu amor, tudo ao redor se anima,
em ouro se transforma a fuligem do pó
e a minha alma, a beleza das coisas sublima!Enfim o teu amor!… E o teu amor primeiro!
Meu Deus! eu sou feliz!… Feliz no mundo eu só!
Ninguém mais é feliz, ninguém!… no mundo inteiro!
Soneto 575 Revisitado
Quem disse que o Natal é só mercado?
Por trás do panetone ou da castanha
está um publicitário, uma campanha,
o lucro, as estatísticas, o Estado.É certo. Mas o espírito arraigado
mais dura que o presente que se ganha,
mais lembra que um peru, que uma champanha
a alguém com mais futuro que passado.Pois ela, a criancinha, é quem segura
o tempo, em seu efêmero momento,
salvando algo de júbilo ou ternura.Esqueça-se o comércio! Ainda tento
rever cada Natal, cada gravura
em meio a tanto adulto rabugento…
A Praça
A praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui … Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante …Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena…De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.
Beleza Morta
De leve, louro e enlanguescido helianto
Tens a flórea dolência contristada…
Há no teu riso amargo um certo encanto
De antiga formosura destronada.No corpo, de um letárgico quebranto,
Corpo de essência fina, delicada,
Sente-se ainda o harmonioso canto
Da carne virginal, clara e rosada.Sente-se o canto errante, as harmonias
Quase apagadas, vagas, fugidias
E uns restos de clarão de Estrela acesa…Como que ainda os derradeiros haustos
De opulências, de pompas e de faustos,
As relíquias saudosas da beleza.
A uma Ausência
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, que me consome, me sustenta;
O bem, que me entretém, me dá cuidado.Ando sem me mover, falo calado;
O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.Choro no mesmo ponto em que me rio;
No mor risco me anima á confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.Mas se de confiado desconfio,
É porque, entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.
Quando A Suprema Dor Muito Me Aperta
Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconserta.Assi, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.Porque essa própria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.Ditosa é, logo, a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.