O Medo
Que não se confunde. Por existir se ganha
e nos pertence. Sílabas ou linguagem,
busca o centro nas mãos, nos olhos, o contacto
incessante. Percorre os muros da memória,na penumbra da palavra se instala. Nada
partilha. Como um monólogo se mascara
de gemas, rumores e gotas de ervas. Flui
e estilhaça as pálpebras, domina as casas,abala os sismos. Ara o corpo, viva árvore
em ascensão, ronda a pele e os jorros do ar.
Até que nos toma e molda o ventre, descobreo preço diário da invisível folhagem
solar. É o que se oculta. Livor, sílaba,
margem eterna da inicial prudência.
Sonetos sobre Muro
28 resultadosEstrangeiro
Sou estrangeiro em todos os lugares.
Inútil procurar-te, aldeia minha.
Subo de escada todos os andares,
com a fria espada a acutilar-me a espinha.Não sou daqui nem sou de lá. Perdi-me
na indecisão de becos e de esquinas.
Como o pardal diante do gato, vi-me
apanhado por garras assassinas.Os mapas pendurados nas paredes
riem de mim como insensíveis redes,
rasgando os peixes que não fogem mais.Prenderam-me entre muros que abomino
e toda a noite entoam-me seu hino
de insultos, gritos e ódios triunfais.
Se ao Mundo Predissesses teu Morrer
Se ao mundo predissesses teu morrer
na morte a natureza ir-te-ia à frente
volvendo com mandado intransigente
no eterno esquecimento o próprio serO céu se rosaria docemente
por do teu corpo a roupa enfim descer
florestas tingiria o teu sofrer
de negro e a noite o mar barca silenteLuto sem nome com estrelas mede
a estela ao teu olhar no arco celeste
e a escuridão de espesso muro impedeque a luz da nova primavera preste
A estação vê nos astros que pararam
as cisternas que a morte te espelharam.Tradução de Vasco Graça Moura
Oficina Irritada
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
A Casa Da Rua Abílio
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidadeDeixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falaram,E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.
O Meu Orgulho
Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Lembro-me que fui a Primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas… Quem soubera
Porque tudo passou e foi quimera,
E porque os muros velhos não dão rosas!O que eu mais amo é que mais me esquece…
E eu sonho: “Quem olvida não merece…”
E já não fico tão abandonada!Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha,
E também é nobreza não ter nada!
Romantismo
Quisera repousar desta vida de agora,
e esquecer no silêncio a dor que me lacera…
– não posso ter em mim o ardor da primavera,
– na casa de meu peito uma saudade chora…E há sempre uma lembrança a recordar de outrora
que me faz sonhador… E há sempre uma quimera,
que ainda vive em minha alma à semelhança da hera
pregada sobre o muro em ruínas que a vigora…Quisera me afastar do mundo, e a alma selvagem
repousar bem distante à beira de um remanso
entre o beijo do vento e o choro da folhagem…E esperar sem ninguém o prosseguir da vida…
Depois… chegando a morte, em preito ao meu descanso
deixar a minha cruz na solidão perdida!…
1
Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t’impece, a ninguém danas!Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.Ah! não te posso ter! deixa ir comprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.Dirás que a pesar meu fostes fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.