O Mundo Só se Dá para os Simples
Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo nĂŁo se queria comĂvel. Ele se queria comĂvel sim — mas para isso exigia que eu fosse comĂŞ-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta Ă© exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigĂŞncia o mundo se transmuta em duro aos dentes e Ă alma. O mundo sĂł se dá para os simples e eu fui comĂŞ-lo com o meu poder e já com esta cĂłlera que hoje me resume. E quando o pĂŁo se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que nĂŁo doĂa eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da prĂłpria força. Eu pensava que a força Ă© o material de que o mundo Ă© feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já nĂŁo era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim,
Textos sobre Céu de Clarice Lispector
3 resultadosNĂŁo Sei Dizer quem Sou
É curioso como nĂŁo sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas nĂŁo posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar nĂŁo sĂł nĂŁo exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir nĂŁo Ă© o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressĂŁo está alojada na parte alta do cĂ©rebro, nos lábios — na lĂngua principalmente —, na superfĂcie dos braços e tambĂ©m correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu nĂŁo sei dizer. O gosto Ă© cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move–se como gelatina, vagarosamente. As vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em cĂ©u azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? NĂŁo, nĂŁo passo bem. Pois ninguĂ©m se faz essas perguntas e eu… Mas Ă© que basta silenciar para sĂł enxergar, abaixo de todas as realidades, a Ăşnica irredutĂvel, a da existĂŞncia. E abaixo de todas as dĂşvidas — o estudo cromático — sei que tudo Ă© perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo.
A Palavra Secreta
Meu Deus do cĂ©u, nĂŁo tenho nada a dizer. O som de minha máquina Ă© macio. Que Ă© que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra Ă© o meu meio de comunicação. Eu sĂł poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra Ă© tĂŁo forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra Ă© uma idĂ©ia. Cada palavra materializa o espĂrito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo – é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade.