Vive o Dia de Hoje!
Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.
Passagens de Vergílio Ferreira
496 resultadosO mais grave no nosso tempo não é não termos respostas para o que perguntamos – é não termos já mesmo perguntas.
A Eternidade é o Nosso Signo
Sim, a eternidade é o nosso signo. Não começámos a existir nem o fim da existência o entendemos como fim. Por isso não sentimos que não existimos antes de começarmos a existir mas apenas que tudo isso que aconteceu antes de termos existido foi apenas qualquer coisa a que por acaso não assistimos como a muito do que acontece no nosso tempo. E à morte invencivelmente a ultrapassamos para nos pormos a existir depois dela. O prazer que nos dá a história do passado, sobretudo os documentos que no-lo dão flagrantemente, vem de nos sentirmos prolongados até lá, de nos sentirmos de facto presentes nesse modo de ser contemporâneos. Mas sobretudo há em nós uma memória-limite, uma memória absoluta que não tem nada de referenciável e se prolonga ao sem fim. Do mesmo modo há o futuro que é pura projecção de nós, apelo irreprimível a um amanhã sem termo ou sem amanhã. Por isso a morte nos angustia e sobretudo nos intriga por nos provar à evidência o que profundamente não conseguimos compreender. Mas sobretudo a eternidade é o que se nos impõe no instante em que vivemos. O tempo não passa por nós e daí vem a impossibilidade de nos sentirmos envelhecer.
O contrário da justiça é a caridade.
O Super-Detergente
Nós vivemos no tempo do record, do máximo, do prestígio do campeão. Todo o vocabulário está cheio dos hiper ou dos super da propaganda comercial. Dizer que tal livro é o melhor de há 30 anos equivale a dizer que este é que é de facto um superdetergente. De resto, os agentes publicitários do material literário não pretenderão talvez enganar-nos. Eles sabem que sabemos que estamos no domínio do reclame. É uma actividade inocente como proclamarmos a excelência de um sabão. E é exactamente por isso que eles usam sempre números redondos. Nunca dizem, por exemplo, que este é o melhor livro de há 47 anos ou de há 23 anos e meio. Na realidade, eles não têm um ponto de referência para marcarem as datas. Falar em 30 ou 50 anos é como usar uma «numeração indeterminada», como se diz em retórica. Garção, ao dizer da Dido moribunda que «três vezes tenta erguer-se», não pretende convencer-nos de que estiveram lá a contá-las. Em todo o caso e de qualquer modo, dizer que este é o melhor livro de há 50 anos afecta as pessoas impressionáveis. Mas por isso mesmo é que existem as agências de publicidade. E ninguém vai pedir-lhes satisfações por reclamar um produto contra a calvície que nos deixou talvez ainda mais depilados.
Para se ver seja o que for não basta que isso seja possível mas que ele se integre dentro da nossa óptica. Porque conhecer é relacionar e o que se não relaciona só existe por si, ou seja, não existe.
Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve.
A Arte Está em Todo o Lado
Nós não nos damos conta de como a arte nos trespassa de todo o lado. Anotar isso aos que vaticinam a morte da arte. Isto ao nível mais corriqueiro. Dispor os móveis numa sala é fazer arte. Ou olhar uma paisagem, pôr uma flor na lapela, ou num vaso. Escolher uma gravata, uns sapatos. Provar um fato. Pentear-se. Fazer a barba ou apará-la quando comprida. Todas as coisas de cerimónia têm que ver com a arte. E o corte das unhas.
Todo o jogo. Toda a verdade que releva da emoção. Às vezes mesmo a escolha do papel higiénico. Mas mesmo a desordem. Bergson, creio, dizia que se tudo fosse desordenado, nós acabaríamos por ler aí uma ordem. E não é o que fazemos ao inventarmos as constelações? Admitir a morte da arte é admitir a morte do homem, que impõe essa arte a tudo o que vê. Mas tenho de ir à casa de banho. A ver se invento arte mesmo aí. (Mas quando disse «casa de banho» e não «retrete», já a inventei.)
A psicologia é o instinto consciencializado.
A maior tragédia para o homem é saber que tem de morrer. Mas a sua maior grandeza é justamente ter consciência. Assim a sua maior grandeza é a sua maior tragédia.
O homem é capaz de dar a vida por um valor; só que não sabe que esse valor a merece, antes de ser capaz de a dar.
Em política, a «honestidade» não conta nem como estratégia nem como índice para avaliação dos outros. Ser «honesto» em política actuante é ser parvo.
O grande segredo da «profundidade psicológica» é que a verdade de um homem aguenta tudo.
A História é feita de máximos que só o são porque quando o foram não calhou haver outro ou pôde haver outro que os relativizasse.
Morrer é uma dignidade que nem todos merecem. Porque alguns merecem apenas que a morte os suprima.
A diferença que vai de ti aos outros, é que quando os outros morrerem, o universo continua.
Cai a Chuva Abandonada
Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consentedo que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasiãode negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.
O artista não cria a obra de arte mas só os seus sinais de trânsito. Quem a cria é quem por eles passa.
Quanto mais grave é uma doença, maior tem de ser a esperança. Porque a função da esperança é preencher o que nos falta.
Uma diferença entre uma grande obra de arte e uma obra medíocre é que a grande obra tende a tornar-se um lugar-comum e a medíocre não o consegue por já o ser.