Se um argumento fosse decisivo, não havia partidos políticos.
Passagens de Vergílio Ferreira
496 resultadosToda a surpresa deixa de o ser quando integrada nos nossos hábitos. E é por isso que uma obra de arte do passado nos deixa quase indiferentes.
O Homem Não é o Indivíduo
«Não é a arranhar interminavelmente o indivíduo que acabamos por encontrar o homem» – diz alguém em certo livro do Malraux. Nada, de facto, mais útil que a separação dos dois conceitos, que tanto tendem a confundir-se, mormente hoje, em que tal confusão parece agravar-se. Com efeito, o «homem» não é o «indivíduo», porque é só do indivíduo aquela parte que pode universalizar-se. E é desta ideia que temos de partir para que um equívoco se não consuma, o equívoco de um individualismo, de um pessoalismo restrito que a arte e o pensamento modernos parecem à primeira vista aceitar.
Que estranho «eu» é pois este que de algum modo dir-se-ia predominar na filosofia e na literatura de hoje? Porque é evidente que uma forte tendência da arte de hoje, do homem actual, apela para a comunicabilidade, para uma fraternidade, e não para um estéril isolamento. Mas acontece que nesse apelo muitas vezes se esquece o que há aí de mecânico, de superficial, de relações externas, imediatas, provisórias, que nos não satisfaz inteiramente. O homem que aí fala é o que se ensurdece a si próprio, às suas vozes profundas, aos avisos que se anunciam desde o limiar da solidão.
Escreve!
Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.
Viver pela Evidência
Creio que já falei disto. Mas de que é que diabo se não falou já? Se não falámos nós, falaram os outros, que também são gente. E no entanto, de cada vez se fala pela primeira vez, porque o que importa não é o que se sabe mas o que se vê. E ver é ver sempre de outra maneira para aquele que vê. Quantas vezes se falou da morte e da vida e do amor e de mil outras coisas sisudas? Mas volta-se sempre à mesma, porque o saber pela evidência é saber pela primeira vez; e uma dor que nos dói ou uma alegria que nos alegra não doeu nem alegrou senão a nós. De modo que de novo me intriga a extraordinária desproporção entre o complexo de uma vida e a coisa chilra que dela resulta.
Mesmo os grandes homens, que são maiores do que nós, que é que nos deixaram em testamento? Um livro, uma ideia, uma fórmula. E os que nada nos deixaram? Mas uma vida é fantástica pelo que nela aconteceu. Há assim um desperdício extraordinário, uma pura perda do que se amealhou. Relações, sentimentos, projectos, acções correntes que foram desencadear mil efeitos maus ou úteis.
Pois, A emoção é decerto uma forma de se subir mais alto. E quando cai, de se cair de mais alto. Aprende a serenidade. Porque mesmo que caias, não te magoas tanto.
A Destruição de Tudo
É a palavra de ordem para o homem de hoje. Destruir. Tudo. Os deuses, as artes, diferenças culturais, ou a só cultura, diferenças sexuais, diferenças literárias ou a só literatura que leva hoje tudo, valores de qualquer espécie, filosofias, o simples pensamento, a simples palavra – tudo alegremente ao caixote. Entretanto, ou por isso, proliferação das gentes com a forma que lhes pertence, devastação da sida, que foi o que de melhor a natureza arranjou para equilibrar a demografia, droga dura para se avançar na vida mais depressa, criminalidade para esse avanço, juventude de esgotos nocturnos, velhos em excesso e que não há maneira de se despacharem e atulham os chamados lares de idosos ou simplesmente os depósitos em que são largados até mudarem de cemitério, politiqueiros que têm a verdade do erro que se segue e o mais e o mais. É tempo de cair um pedregulho como o que acabou com os dinossauros há sessenta milhões de anos e de poder dar-se a hipótese de a vida recomeçar. Até que venha outra vez a destruição e Deus definitivamente se farte do brinquedo. Entretanto vê se vês ainda alguma flor ao natural e demora-te um pouco a admirar-lhe a beleza e estupidez.
Mas de vez em quando ergues-te ainda frenético, como esse velho de que se conta que fazia amor uma vez por ano…
Não se faz arte com bons sentimentos. Mas com os maus também não. Porque quando se entra em arte, a moral fica à porta e só entra nela a inocência que se ignora.
A razão é um elástico. Vê se consegues não a esticar muito para não rebentar.
Há Dentro de Nós um Poço
Há dentro de nós um poço. No fundo dele é que estamos, porque está o que é mais nós, o que nos individualiza, a fonte do que nos enriquece no em que somos humanos. E a vida exterior, o assalto do que nos rodeia, o que visa é esse íntimo de nós para o ocupar, o preencher, o esvaziar do que nos pertence e nos faz ser homens. Jamais como hoje esse assalto foi tão violento, jamais como hoje fomos invadidos do que não é nós. É lá nesse fundo que se gera a espiritualidade, a gravidade do sermos, o encantamento da arte. E a nossa luta é terrível, para nos defendermos no último recesso da nossa intimidade. Porque tudo nos expulsa de lá Quando essa intimidade for preenchida pelo exterior, quando a materialidade se nos for depositando dentro, o homem definitivamente terá em nós morrido.
Já há exemplos disso. Um dos mais perfeitos chama-se robot. É invencível pensarmos o que será o homem amanhã. E nenhuma outra imagem se nos impõe com mais força. Mas o que desse visionar mais nos enriquece a alma é que o homem então será possivelmente feliz. Porque ser homem não é ter felicidade mas apenas ser humano.
Se fazes questão em reflectir sobre o enigma da vida e do universo, vê se te despachas depressa, que a espécie humana qualquer dia acaba.
Mau sinal quando nos dizem que estamos «na mesma». Significa isso que devíamos estar «na outra».
Muitas vezes o problema não é o de se não ter talento mas apenas o de se não saber ter. Porque uma coisa é ter qualidades e outra ter o instinto da sua exacta aplicação.
Do amor se diz que é frágil. Da amizade se não diz que o é também. Só que a razão de o ser ou não ser não é tão visível. Nem tão chocante.
A avareza pode ser uma expressão de humildade, como o esbanjamento o é de megalomania.
Qual é a Nossa Puerilidade Actual?
Que se pensará de nós daqui a cem anos? Como se sentirá o que hoje sentimos? Porque tudo envelhece tão incrivelmente cedo. Quando se relê uma revista de há vinte, trinta anos, não são bem os assuntos que envelheceram mas a maneira como se é nele, com eles. É-se então ingénuo, como não sabemos explicar. Tudo perde então viabilidade, é um ser-se infantil, um modo ridículo de relacionamento com a vida. As ideias podem talvez persistir. Mas encarquilharam ao muito sol que apanharam, são quebradiças, frágeis no modo de existirem, fúteis e pueris como uma moda que passou. É a altura de vir ao de cima o que era então invisível e é agora a parcela que lançamos nas nossas contas de homens. É a altura de isso se separar do ridículo em que se encarnou e de viver por si na significação que teve.
A Maravilha da Vida
Desvia a tua atenção para a maravilha da vida e a vida se te não esgotará. Economiza os teus «porquês» e «para quê», porque como na embriaguez só já paras na morte. Mas se insistes em chegar a Deus, submete-o ao teu questionar e verás como ele fica desnorteado. Porque o teu questionar vai para lá dele e desvanece-se no vazio. Aceita a vida, que ela é bastante para qualquer questionar. E poderás então adormecer porque há aí verdade que chegue. Dorme.
Crer para ver.
Vive o Instante que Passa
Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.