Corre suave e brando
Com tuas claras águas,
SaĂdas de meus olhos, doce Tejo.
Passagens de LuĂs de Camões
351 resultadosAmar Ă© um cuidar que se ganha em se perder.
Porque Quereis, Senhora, Que Ofereça
Porque quereis, Senhora, que ofereça
a vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que mereço,
bem por nascer está quem vos mereça.Sabei que, enfim, por muito que vos peça,
que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.Assi que a paga igual de minhas dores,
com nada se restaura, mas deveis ma,
por ser capaz de tantos disfavores.E se o valor de vossos servidores
houver de ser igual convosco mesma,
vĂłs sĂł convosco mesma andai d’amores.
Do Viver me Desapossa aquele Riso com que a Vida Dais
Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do CĂ©u certĂssimos sinais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.Vereis que do viver me desapossa
Aquele riso com que a vida dais;
Vereis como de Amor nĂŁo quero mais,
Por mais que o tempo corra, o dano possa.E se ver-vos nesta alma, enfim, quiserdes,
Como num claro espelho, ali vereis
Também a vossa, angélica e serena.Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, nĂŁo quereis:
Tanto gosto levais de minha pena!
Transforma-se o Amador na Cousa Amada
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
NĂŁo tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co’a alma minha se conforma,Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Ditoso Seja Aquele Que Somente
Ditoso seja aquele que somente
se queixa de amorosas esquivanças;
ois por elas não perde as esperanças
de poder n’algum tempo ser contente.Ditoso seja quem, estando ausente,
não sente mais que a pena das lembranças;
porqu’, inda que se tema de mudanças,
menos se teme a dor quando se sente.Ditoso seja, enfim, qualquer estado
onde enganos, desprezos e isenção
trazem o coração atormentado.Mas triste quem se sente magoado
d’erros em que nĂŁo pode haver perdĂŁo,
sem ficar n’alma a mágoa do pecado.
Que Poderei Do Mundo Já Querer
Que poderei do mundo já querer,
que naquilo em que pus tamanho amor,
nĂŁo vi senĂŁo `desgosto e desamor,
e morte, enfim, que mais nĂŁo pode ser!Pois vida me nĂŁo farta de viver,
pois já sei que não mata grande dor,
se cousa há que mágoa dê maior,
eu a verei; que tudo posso ver.A morte, a meu pesar, me assegurou
de quanto mal me vinha; já perdi
o que perder o medo me ensinou.Na vida desamor somente vi,
na morte a grande dor que me ficou:
parece que para isto sĂł nasci!
Do Tempo que Fui Livre me Arrependo
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.Amor ali, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com uma rara e angélica figura
A vista da razĂŁo me salteava.Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, nĂŁo sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,Deixei-me cativar; mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.
Cara Minha Inimiga, Em Cuja MĂŁo
Cara minha inimiga, em cuja mĂŁo
pĂ´s meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh’alma te acharĂŁo.E se meus rudos versos podem tanto
que possam prometer te longa histĂłria
daquele amor tão puro e verdadeiro,celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memĂłria,
será minha escritura teu letreiro.
Somente se Queixa de Amorosas Esquivanças
Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu’inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem um coração atormentado.Mas triste quem se sente magoado
De erros em que nĂŁo pode haver perdĂŁo
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.
Oh! forçoso vigor do pensamento,
Que pode noutra cousa estar mudando
A forma, a vida, o siso, o entendimento!
Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho tudo Ă© vosso.
Apolo E As Nove Musas, Discantando
Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influĂam
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:-Ditoso seja o dia e hora, quando
tĂŁo delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar se em seu desejo traspassando!Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corria
tĂŁo ligeira que quase era invisĂvel.Converteu se me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou,
será de maior mal, se for possĂvel.
Na Desesperação Já Repousava
Na desesperação já repousava
o peito longamente magoado,
e, com seu dano eterno concertado,
já não temia, já não desejava;quando üa sombra vã me assegurava
que algum bem me podia estar guardado
em tĂŁo fermosa imagem que o treslado
n’alma ficou, que nela se enlevava.Que crĂ©dito que dá tĂŁo facilmente
o coração áquilo que deseja,
quando lhe esquece o fero seu destino!Oh! deixem-me enganar, que eu sou
contente; que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glória já do que imagino.
E se uma pouca vida, estando ausente,
Me deixa Amor, Ă© por que o pensamento
Sinta a perda do bem que está presente.
Quem diz que Amor Ă© falso ou enganoso
Quem diz que Amor Ă© falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vĂŁo desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.Amor Ă© brando, Ă© doce, e Ă© piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.Se males faz Amor em mim se vĂŞem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.Mas todas suas iras sĂŁo de Amor;
Todos os seus males sĂŁo um bem,
Que eu por todo outro bem nĂŁo trocaria.
Fermosos Olhos Que Na Idade Nossa
Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certissimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor nĂŁo quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.E se dentro nest’alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, nĂŁo quereis:
tanto gosto levais de minha pena!
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa, e nĂŁo segura.
Descalça vai pera a fonte
Lianor, pela verdura;
Vai fermosa, e nĂŁo segura.
Pera quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos bĂşzios apanhando?
Pera quem, de mergulho no mar bravo,
Os ramos de coral venho arrancando?