Até que um Dia…
Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.E a festa continua… é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.
Passagens sobre Melodia
47 resultadosA música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia.
Viola Azulada
Sempre que houver saco retiro a viola,
e ponho a cantoria no sereno
da noite, em serenata que se evola
em sons antigos, raros, que enveneno.Nos acordes do pinho, a mão que sola
repete a melodia no azul pleno
dessa paixão azul, de ontens e agoras,
azulando a saudade e seu terreno.Carlos Pena Filho pintou de azul
os seus sapatos por ser impossível
pintar de azul as ruas do seu rumo,e a trova azul que eu canto agora aqui
mundo afora vai na nuvem que assume
chover de azul os sonhos por aí.
Falta Pouco
Falta pouco para acabar
o uso desta mesa pela manhã
o hábito de chegar à janela da esquerda
aberta sobre enxugadores de roupa.
Falta pouco para acabar
a própria obrigação de roupa
a obrigação de fazer barba
a consulta a dicionários
a conversa com amigos pelo telefone.Falta pouco
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao país, à cidade
as novidades sangrentas do mundo
a música dos intervalos.Falta pouco para o mundo acabar
sem explosão
sem outro ruído
além do que escapa da garganta com falta de ar.Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.
A chuva, lá fora, trauteia baixinho a sua clara e doce cantiga de Inverno, a sua eterna melodia simples que embala e apazigua. Sinto-me só. Quantas coisas lindas e tristes eu diria agora a Alguém que não existe!
Hora Vermelha
Por que vieste, pensamento?
Já me bastava o Mar violento,
Já me bastava o Sol que ardia…
P’los meus sentidos escorria
não sei lá bem que seiva forte
que a carne toda me deixava
qual uma flor ou uma lava
num riso aberto contra a Morte.Já me bastava tudo isto.
Mas tu vieste, pensamento,
e vieste duro, turbulento.
Vieste com formas e com sangue:
erectos seios de mulher,
as carnes róseas como frutos.Boca rasgada num pedido
a que se quer e se não quer
dizer que não.
Os braços longos estendidos.
A mão em concha sobre o sexo
que nem a Vénus de Camões.Aí!, pensamento,
deixa-me a calma da Poesia!
Aqui na praia só com ela,
virgem castíssima, sincera!…
Sua mão branca saberia
chamar cordeiro ao Mar violento,
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia.
Mas tu vieste, pensamento.
Tua nudez, que me obsidia,
logo, subtil, encheu de alento
velhos desejos recalcados,
beijos mordidos
antes de os ver a luz do Dia.
O autor aos seus versos
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz e tirania:Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.