Estou Pronta a Amar-te Toda a Minha Vida
Oh, Henry, não sei o que se passa comigo. Estou tão exultante. Estou quase louca, a trabalhar, a amar-te, a escrever e a pensar em ti, a tocar os teus discos, a dançar no quarto quando os meus olhos se cansam. Deste-me tais alegrias que não importa o que acontece a seguir… Estou pronta para morrer… E pronta para amar-te toda a minha vida!
Como tens andado? Tenho estado preocupada com a tua constipação. O Hugh vai domingo à noite para Londres, durante duas noites. Escrever-te-ei outra vez sobre isso. Adorava que pusesses a tua máquina de escrever num táxi e viesses até aqui – ou, se estás cansado depois da visita do Renaud, virias só para um descanso. Eu também preciso dum. Escreve à tua mãe hoje a perguntar a data e hora exactas do teu nascimento. Je t’aime.
Passagens sobre Nascimento
86 resultadosA Alegoria da Caverna
– Imagina agora o estado da natureza humana com respeito à ciência e à ignorância, conforme o quadro que dele vou esboçar. Imagina uma caverna subterrânea que tem a toda a sua largura uma abertura por onde entra livremente a luz e, nessa caverna, homens agrilhoados desde a infância, de tal modo que não possam mudar de lugar nem volver a cabeça devido às cadeias que lhes prendem as pernas e o tronco, podendo tão-só ver aquilo que se encontra diante deles. Nas suas costas, a certa distância e a certa altura, existe um fogo cujo fulgor os ilumina, e entre esse fogo e os prisioneiros depara-se um caminho dificilmente acessível. Ao lado desse caminho, imagina uma parede semelhante a esses tapumes que os charlatães de feita colocam entre si e os espectadores para esconder destes o jogo e os truques secretos das maravilhas que exibem.
– Estou a imaginar tudo isso.
– Imagina homens que passem para além da parede, carregando objectos de todas as espécies ou pedra, figuras de homens e animais de madeira ou de pedra, de tal modo que tudo isso apareça por cima do muro. Os que tal transportam, ou falam uns com os outros,
O Redentor Chorando
Se considero o triste abatimento
Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.Mas súbito me diz o pensamento,
Para aplacar-me a dor que me traspassa,
Que Este que trouxe ao mundo a Lei da Graça,
Teve num vil presepe o nascimento.Vejo na palha o Redentor chorando,
Ao lado a Mãe, prostrados os pastores,
A milagrosa estrela os reis guiando.Vejo-O morrer depois, ó pecadores,
Por nós, e fecho os olhos, adorando
Os castigos do Céu como favores.
Natal
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Tenho um amigo obeso que não suportaria viajar em terceira classe de Paris a Ruão, e que vai, naquele corpo de quarta classe, do nascimento à morte.
Alimentar o Amor
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão.