Quando há apego ao bem, este deixa de ser bem; quando não há apego, até o mal deixa de ser mal. O verdadeiro bem está presente onde não há apego algum, tal como nas águas que correm ou nas nuvens que flutuam. Em outras palavras, o verdadeiro bem transcende o apego.
Passagens sobre Nuvens
317 resultadosIniciação ao Diálogo
I
De início bastará que olhes mais vezes
na mesma direcção hoje evitada
(estandartes nos olhos são mais leves
do que no coração duros tambores),
ainda que o teu olhar próprio não rompa
as lajes de ódio com que te muraste.II
O vento e chuva e tempo, sobre a pedra
passando sempre, hão-de gastá-la: um dia,
antes que a obture o musgo ou algum pássaro
aí faça o ninho fofo, encontrarás,
entre o lado que afirmas teu e o outro,
uma réstia de azul — o azul de todos.III
Talvez rumor de passos, para além
do muro atravessado aos teus desígnios…
Não porás terra onde se pôs o céu:
ver o que diz o ouvido agora queres,
e onde a rocha fendeu-se cabe um olho
humano e mais a boca do fuzil.IV
Provando frágil o que acreditavas
inexpugnável, eis que em ti se fixam
atentos outro olho e outro fuzil!V
Contemplador e contemplado, hesitas
aprendendo na espera o inesperado:
lares como os que tens,
É no Meu Corpo que Morreste
é no meu corpo que morreste. agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormitam asconhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam nasossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.
Dúvida
Amas-me a mim? Perdoa,
É impossível! Não,
Não há quem se condoa
Da minha solidão.Como podia eu, triste,
Ah! inspirar-te amor
Um dia que me viste,
Se é que me viste… flor!Tu, bela, fresca e linda
Como a aurora, ou mais
Do que a aurora ainda,
Mal ouves os meus ais!Mal ouves, porque as aves
Só saltam de manhã
Seus cânticos suaves;
E tu és sua irmã!De noite apenas trina
O triste rouxinol:
Toda a mais ave inclina
O colo ao pôr do Sol.Porquê? Porque é ditosa!
Porquê? Porque é feliz!
E a que sorri a rosa?
Ao mesmo a que sorris…À luz dourada e pura
Do astro criador:
À noite, não, que é escura,
Causa-lhe a ela horror.Ora uma nuvem negra,
Uma pesada cruz,
Uma alma que se alegra
Só quando vê a luzDe que ele, o Sol, inunda
O mar, quando se põe,
Imagem moribunda
De um coração que foi…
Escola
O que significa o rio,
a pedra, os lábios da terra
que murmuram, de manhã,
o acordar da respiração?O que significa a medida
das margens, a cor que
desaparece das folhas no
lodo de um charco?O dourado dos ramos na
estação seca, as gotas
de água na ponta dos
cabelos, os muros de hera?A linha envolve os objectos
com a nitidez abstracta
dos dedos; traça o sentido
que a memória não guardou;e um fio de versos e verbos
canta, no fundo do pátio,
no coro de arbustos que
o vento confunde com crianças.A chave das coisas está
no equívoco da idade,
na sombria abóbada dos meses,
no rosto cego das nuvens.
Este Retrato Vosso é o Sinal
Este retrato vosso é o sinal
ao longe do que sois, por desamparo
destes olhos de cá, porque um tão claro
lume não pode ser vista mortal.Quem tirou nunca o sol por natural?
Nem viu, se nuvens não fazem reparo,
em noite escura ao longe aceso um faro?
Agora se não vê, ora vê mal.Para uns tais olhos, que ninguém espera
de face a face, gram remédio fora
acertar o pintor ver-vos sorrindo.Mas inda assim não sei que ele fizera,
que a graça em vós não dorme em nenhuma hora.
Falando que fará? Que fará rindo?
O Coração – II
A solidão é perfeita como um rasgo entre
as nuvens, ao último sonho. A solidão
que se cala em teu fundo e vai envelhecendo
na terra perdida do som descompassado.Te guardas na intimidade dos armários,
onde a paz é negra e se desagrega a luz.
Nunca foste mais do que uma ficção, matriz
de riso e sombra, um poço verde, teoremade ilusões, engrenagem de poentes roxos.
E, agora, frouxo, já nada designas ou
desenhas. És, apenas, testemunha efémerae longínqua, trovão engolido de Deus,
fingidor ferido de doces cantos, mentira
precária nas cordas de uma harpa febril.
Saudade do Teu Corpo
Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?…Anda a saudade do teu corpo (sentes?…)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: «vem, meu todo amado…»É o teu corpo em sombra esta saudade…
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade…Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra…
Vês?! A saudade é um escultor antigo!
Quimeras
Há na minha vida quimeras distantes,
Quais nuvens errantes, em dias atrozes.
Eu corro atrás delas, mas elas, por fim,
Perdem-se de mim, no horizonte, velozes.Há no meu diário silenciosas dores,
Quais flores que o vento desfaz de manhã.
Com elas me embalo nos dias soturnos,
Dir-se-iam «Nocturnos», como os de Chopin.Há no meu caminho nem sei bem o quê.
Alguém que me vê e que eu não visiono.
São meus dias passados, meus dias de infância,
Sabendo à fragrância das tardes de Outono.Saudades, saudades, sentido da vida,
Um dia vivida e que não volta mais.
Meus dias passados, sobre eles me debruço,
No eterno soluço das coisas mortais.Há na minha vida um viver fictício,
Fogo de artifício, esplendente e altivo.
Eu vejo-o enlevado, um instante fugaz,
Depois se desfaz na noite em que eu vivo.Há na minha vida ignotas tristezas,
Pequenas certezas a que me apeguei.
Com elas eu vivo, com elas eu morro,
Para meu socorro é que eu as criei.Quimeras, quimeras,
Estive Pensando Hoje de Manhã
Estive pensando hoje de manhã
que fino trabalho fez o céu?
para amanhecer com cara de romã?
Estive pensando hoje de manhã
onde será que nascem os ventos?
para viverem assim de déu em déu?
que nuvem é como pensamento
sai andando sem poder parar.
Estive pensando hoje de manhã
enganoso pensar que o mar
vive sozinho parado sonhando.
Estive pensando hoje de manhã
que tudo na terra vive amando:
mar, nuvem, vento, idéia, romã.
Vive o Instante que Passa
Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.
Tormanto do Ideal
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a côr, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fórmas incompletas
Para sempre fiquei palido e triste.
Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia.
Não Sabemos Ler o Mundo
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens.
Que um Homem Tenha a Força de ser Sincero
A maior parte das pessoas, seduzidas pelas aparências, deixam-se tomar pelos engodos enganadores de uma baixa e servil complacência; tomam-na por um sinal de uma verdadeira amizade; e confundem, como dizia Pitágoras, o canto das sereias com o das musas. Crêem, digo eu, que produz a amizade, como as pessoas simples pensam que a terra fez os Deuses; em lugar de dizerem que foi a sinceridade que a fez nascer como os Deuses criaram os sinais e as potências celestes.
Sim! É de uma força tão bruta que a amizade deve provir, e é de uma bela origem a que tira de uma virtude que dá origem a tantas outras. As grandes virtudes, que nascem, se ouso dizê-lo, na parte da alma mais subida e mais divina, parecem estar encadeadas umas nas outras. Que um homem tenha a força de ser sincero, e vereis uma certa coragem difundida em todo o seu carácter, uma independência geral, um império sobre si mesmo igual ao exercido sobre os outros, uma alma isenta das nuvens do temor e do terror, um amor pela virtude, um ódio pelo vício, um desprezo pelos que se lhe abandonam. De um tronco tão nobre e tão belo,
Amor
Tu acendeste-me o lume,
Naquela tarde de frio. E do jardim,
Solitário e sombrio,
Vinha até mim
Um suave perfume
De goivos a morrer.Sobre a cidade calma,
As nuvens, uma a uma,
Como flocos de espuma,
Passavam a correr.Era uma tarde, das tardes mais frias!
E as coisas não me sorriam.
Somente,
Doente,
Tu me sorrias.Na vidraça, como gelo,
Soluçaram gotas de água.
Afaguei o teu cabelo,
Com alegria e com mágoa.Era uma tarde sombria,
De luz bem singular.
Tarde tão fria,
Até parecia
Que tudo ia gelar.
Aparição
A mulher que por mim passou na rua, há pouco,
foi uma coisa diáfana, gentil,
cedo, a pairar
na sombra dum jardim
com flores, em baixo, ajoelhadas,
ao senti-la na altura,
e mandando-lhe o aroma em lágrimas, desfeito,
para mantê-la em uma nuvem branca…Mulher, coisa diáfana, vaga e bela, sem desenho,
logo fluido animando o colo duma nuvem, nuvem,
num ápice, trucidada pelo vento!
O Demónio do Artifício
Não são muitas as pessoas dotadas para a apreensão da Natureza e para a sua utilização imediata. A maior parte gosta de descobrir entre o conhecimento e a utilização uma espécie de castelo nas nuvens, que se entretêm a aperfeiçoar, esquecendo assim ao mesmo tempo o objecto e a respectiva utilização.
Do mesmo modo, não é fácil compreender-se que o que acontece nos grandes domínios da Natureza é o mesmo que sucede nos mais pequenos. Mas se a experiência o indica com premência, os indivíduos acabam por aceitar tal ideia de bom grado. Há um parentesco entre a atracção de fragmentos de palha por uma vareta de âmbar depois de friccionada e a mais terrível das tempestades. Em certo sentido são o mesmo fenómeno. E há outros casos em que não temos dificuldade em aceitar essa micromegalogia. Mas rapidamente somos abandonados pelo puro espírito da Natureza e apodera-se de nós o demónio do artifício, que sabe sempre insinuar-se em todos os campos.
Velando
Junto dela, velando… E sonho, e afago
Imagens, sonhos, versos comovido…
Vejo-a dormir… O meu olhar é um lago
Em que um lírio alvorece reflectido…Vejo-a dormir e sonho… Só de vê-la
Meu olhar se perfuma e em minha vista
Há todo um céu de Amor a estremecê-la
E a devoção ansiosa dum Artista…– Nuvem poisada, alvente, sobre a neve
Das montanhas do céu, – ó sono leve,
Hálito de jasmim, lírio, luar…Respiração de flor, doçura, prece…
-Ó rouxinóis, calai! Fonte, adormece!…
Senão o meu Amor pode acordar!…
A Verdadeira Liberdade
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim…
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!Passos todos passinhos de criança…
Sorriso da velha bondosa…
Apertar da mão do amigo [sério?]…
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!Ah, tenho uma sede sã.