Se um Dia a Juventude Voltasse
se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vidasulcaria com as unhas o medo de te perder… eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amordepois… mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpomas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco…
Poemas sobre Cabelos
118 resultadosElegia Marítima
Nasceu da terra. Seu corpo,
feito do limo das grutas,
surgiu cavalgando um rio
por uma estrada de luas.Através de ondas agrestes
de um oceano vegetal,
de onde acenavam aos olhos
ilhotas de manacás,alcançou o colo das praias
que a mão lasciva do mar
aperta, despe e mergulha
em seu aroma de sal.Ali viveu junto às vagas
essa esquiva amendoeira,
cabelos soltos à brisa,
pés escondidos na areia.Um dia o mar a arrastou
através de ilhas sem fim.
Parti com ela. E hoje canta
a morte dentro de mim.
Definição por Soma
Um consumir-se a cada instante
um escoar-se e um desperdício
um e contudo outro e diverso
um processar-se e um processoPara tocar o que do vento
para prender o que da fuga
para morder o que do sono
para tão só há que esquecerCombatido por trevas últimas
combatido por rostos pálidos
combatido por chuva e névoa
combatido e a dar combateChego ao inóspito do clima
chego ao vazio onde só o sexo
chego ao anónimo e mortal
chego ao agudo e seus recônditosEssa unidade com o múltiplo
essa inclusão pelo abandono
essa causalidade absurda
essa e não outra que a disputaDiscórdia que se aceita íntegra
discórdia que mascara os pactos
discórdia dos estados físicos
discórdia e discórdia e insolúvelQuando de cada nascimento
quando visível o invisível
quando o que há é só o agora
quando dissolução do tempoPasso por fios de cabelo
passo por rápidos que fogem
passo por bons e maus momentos
passo e no entanto permaneçoHomem que sou e com memória
homem e póstumo e morrendo
homem que alto e sobrevive
homem e seco e secas lágrimas
Os Anos de Ti para Mim
O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos
teus olhos
pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o
outono.
Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem
um terceiro:
sorvemos um último vazio.Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais
depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
Loira
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Rei Destronado
O teu lugar vazão!… E esteve cheio,
Cheio de mocidade e de ternura!
Como brilhava a tua formosura!
Que luz divina te doirava o seio!Quando a camisa tépida despias,
– Sob o reflexo do cabelo louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.Que fundo o fogo do primeiro beijo,
Que eu te arrancava ao lábio recendente!
Morria o meu desejo… outro desejo
Nascia mais ardente.Domada a febre, lânguida, em meus braços
Dormias, sobre os linhos revolvidos,
Inda cheios dos últimos gemidos,
Inda quentes dos últimos abraços…Tudo quanto eu pedira e ambicionara,
Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara:Reino perdido! glória dissipada
Tão loucamente! A alcova está deserta,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta…
Endechas a Bárbara escrava
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.U~a graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.
Pelicano
Onda que vais morrendo em nova onda,
mar que vais morrendo noutro mar,
assim a minha vida se desprenda e do meu sumo
escorra a vida para as bocas que se finam
de desejar.Ó dia que vais escoando como os rios
e empalideces rostos e cabelos,
traze a palavra para a incerteza
dos que vagueiam à deriva;
a bandeira amarela se rasgue
e dos farrapos se gere outra cor.Ó dia correndo e findando,
some-te lá no cimo da fraga
mas deixa que no teu rasto fique o sangue
anunciando a esperança noutro dia.Sê como a onda que morre para outra começar.
Epitáfio
Ainda correm lágrimas pelos
teus grisalhos, tristes cabelos,
na terra vã desintegrados,
em pequenas flores tornados.Todos os dias estás viva,
na soledade pensativa,
ó simples alma grave e pura,
livre de qualquer sepultura!E não sou mais do que a menina
que a tua antiga sorte ensina.
E caminhamos de mão dada
pelas praias da madrugada.
Para Ser Lido Mais Tarde
Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantarquando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quandojá não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveresquando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalhopara ti será o começo de tudo
Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferendaHás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instanteMas para mim será já tão frio e já tão tarde
E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara
Há Momentos que Resulta tão Difícil Chegarmos a um Sentimento
Há momentos em que do fogo sobe para a noite
há momentos que resulta tão difícil chegarmos a um
sentimento.
Descubro uma figura que já não
sei seguir. Há momentos
eu vejo o que se senta à minha frente o amável corte
de cabelo o severo intento tomado como correcto
rosto onde a plenitude era possível. Rosto onde o
passado é a tarde de verão a pequena cidade onde o
sol pode dizer-se cai no campo rosto de passados ou
uma tarde de verão para ter tempo.
Musa dos Olhos Verdes
Musa dos olhos verdes, musa alada,
Ó divina esperança,
Consolo do ancião no extremo alento,
E sonho da criança;Tu que junto do berço o infante cinges
C’os fúlgidos cabelos;
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;Tu que fazes pulsar o seio às virgens;
Tu que às mães carinhosas
Enches o brando, tépido regaço
Com delicadas rosas;Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!
Adolescentes
Exaustos, mudos, sempre que os vejo,
Nos bancos tristes que há na cidade,
Sobe em mim próprio como um desejo
Ou um remorso da mocidade…E até a brisa, perfidamente
Lhes roça os lábios pelos cabelos
Quando a cidade, na sua frente
Rindo e correndo, finge esquecê-los!Eles, no entanto, sentem-na bela.
(Deram-lhe sangue, pranto e suor).
Quantos, mais tarde se vingam dela
Por tudo o que hoje sabem de cor!E essas paragens nos bancos tristes
(Aquela estranha meditação!)
Traz-lhes, meu Deus, só porque existes,
A garantia do teu perdão!
Quem me Dera que a Minha Vida Fosse um Carro de Bois
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas
…
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
A Bela do Bairro
Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? Quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbequeainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
Esta Noite Morrerás
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma,
A uma Dama
Por fazer lisonja às flores
De flores touca o cabelo
Nise, a gala do donaire,
Nise, a glória dos desejos.
Invejosas as estrelas
Murmuraram tanto emprego,
Se as não contentara Nise
Com tê-las nos olhos negros.
De garbo, postura e talhe
Vai luzida em tanto extremo,
Que nas vidas que cativa
Tem muita parte o asseio.
Quanto pisa e quanto fala,
Vai brotando e florescendo
Uma rosa em cada passo,
Um jasmim em cada alento.
Caçadora ufana e dextra,
Quem viu caçadora Vénus?
Pede as armas emprestadas
Dizem que a um menino cego.
Galharda o arco exercita,
E, com movimento dextro,
De quantas setas lhe fia,
Nenhuma lhe leva o vento.
Guarde-se todo o alvedrio,
Que não dão as frechas erro,
Pois para acertar as vidas
Tomam nos olhos preceitos.
Despejada comunica
Ao monte seus raios belos,
Que nem sempre o majestoso
Há-de afectar o encoberto.
E, com deixar-se admirar,
Nada lhe perde o respeito;
Mas tais amas traz consigo…
Pastores, diga-o Fileno.
Conheço esse Sentimento
Conheço esse sentimento
que é como a cerejeira
quando está carregada de frutos:
excessivo peso para os ramos da alma.Conheço esse sentimento
que é o da orla da praia
lambida pela espuma da maré:
quando o mar se retira
as conchas são pequenas saudades
que doem no coração da areia.Conheço esse sentimento
que é o dos cabelos do salgueiro
revoltos pelas mãos ágeis da tempestade:
na hora quieta do amanhecer
pendem-lhe tristemente os braços
vazios do amado corpo do vento.Conheço esse sentimento
que passa nos teus olhos e nos meus
quando de mãos dadas
ouvimos o Requiem de Mozart
ou visitamos a nave de Alcobaça.Pedro e Inês
a praia e a maré
o salgueiro e o vento
a verdade e o sonho
o amor e a morte
o pó das cerejeiras
tu.
e eu.
Notícias do Bloqueio
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos…
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento
a função do amor é fabricar desconhecimento
(o conhecido não tem desejo;mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescare os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver(que riem e choram)que sonham,criam e matam
enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:
pode não ser sempre assim;e eu digo
que se os teus lábios,que amei,tocarem
os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço,ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,