Distante Melodia
Num sonho d’Iris, morto a ouro e brasa,
Vem-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre vĂ©us de tule –
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.EntĂŁo os meus sentidos eram cĂŽres,
Nasciam num jardim as minhas ansias,
Havia na minh’alma Outras distancias –
Distancias que o segui-las era flĂŽres…CaĂa Ouro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me…
Noites-lagÎas, como éreis belas
Sob terraços-liz de recordar-me!…Idade acorde d’Inter sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua…BalaĂșstres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume…
Dominio inexprimivel d’Ăpio e lume
Que nunca mais, em cĂŽr, hei de habitar…TapĂȘtes doutras Persias mais Oriente…
Cortinados de Chinas mais marfim…
Aureos Templos de ritos de setim…
Fontes correndo sombra, mansamente…ZimbĂłrios-panthĂ©ons de nostalgias…
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar…
Escadas de honra, escadas sĂł, ao ar…
Novas Byzancios-alma, outras Turquias…Lembranças fluidas…
Poemas sobre Lembranças
79 resultadosChuva
Chuva, caindo tĂŁo mansa,
Na paisagem do momento,
Trazes mais esta lembrança
De profundo isolamento.Chuva, caindo em silĂȘncio
Na tarde, sem claridade…
A meu sonhar d’hoje, vence-o
Uma infinita saudade.Chuva, caindo tĂŁo mansa,
Em branda serenidade.
Hoje minh’alma descansa.
â Que perfeita intimidade!…
Que Diremos Ainda?
VĂȘ como de sĂșbito o cĂ©u se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nĂłs se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a Ășltima luz sobre as areias.Que diremos ainda? SerĂŁo palavras,
isto que aflora aos lĂĄbios?
Palavras?, este rumor tĂŁo leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?Palavras, nĂŁo. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.
A Lua de Londres
Ă noite; o astro saudoso
Rompe a custo um plĂșmbeo cĂ©u,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, hĂșmido vĂ©u:
Traz perdida a cor de prata,
Nas ĂĄguas nĂŁo se retrata,
NĂŁo beija no campo a flor,
NĂŁo traz cortejo de estrelas,
NĂŁo fala d’amor Ă s belas,
NĂŁo fala aos homens d’amor.Meiga lua! os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d’alĂ©m do mar?
Foi na terra tua amada,
Nessa terra tĂŁo banhada
Por teu lĂmpido clarĂŁo?
Foi na terra dos verdores,
Na pĂĄtria dos meus amores,
PĂĄtria do meu coração?Oh! que foi!… deixaste o brilho
Nos montes de Portugal,
LĂĄ onde nasce o tomilho,
Onde hĂĄ fontes de cristal;
LĂĄ onde viceja a rosa,
Onde a leve mariposa
Se espaneja Ă luz do sol;
LĂĄ onde Deus concedera
Que em noites de Primavera
Se escutasse o rouxinol.Tu vens, Ăł lua, tu deixas
Talvez hĂĄ pouco o paĂs,
Onde do bosque as madeixas
JĂĄ tĂȘm um flĂłreo matiz;
Amaste do ar a doçura,
Esta Dor que me Faz Bem
As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?Este cheiro de além-vida
e de indizĂvel tristeza,
do tempo morto, esquecido…
TĂŁo desbotada e puĂda
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega Ă cama onde me estendo
num perfume de violeta.Vejo as tuas jĂłias falsas
que usavas todos os dias,
do princĂpio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mĂŁe, e as melodias
que cantavas ao piano.Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.Quantas voltas deu na vida
este ĂĄlbum de retratos,
de veludo cor de tĂlia?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Testamento
Na taça que eu lavrei quero que bebas
O segredo profundo dos meus dias;
E, dona do que Ă© meu, de mim recebas
Toda a riqueza que não conhecias.A taça é branca como um véu sem cor,
E o segredo nimbado de vazio;
Quero que a veja pois o teu amor,
E bebas sĂł dum trago o luar frio.Quero, depois, que quebres o cristal
De encontro à fraga dura da lembrança
Do Poeta que fui ao natural
Junto de ti a trabalhar na herança.
Se o Queres Partilhar Fica Comigo
O dia estava pronto
mas secreto
embora a claridade o denunciasse
uma denĂșncia tĂmida pendente
de uma neutralidade pensativa
os eflĂșvios ligeiros se cruzavam
tentando revelar a flor de outubro
a sedentĂĄria sombra aniquilada
tremia e a lembrança dos teus olhos
se desenhava em soma de silĂȘncio
sobre teu rosto de medalha antiga
eu vinha de cuidados iminentes
buscando te integrar numa elegia
uma elegia simples posta Ă margem
da solidĂŁo metĂĄlica da vida
queria a precisão poligeométrica
antecipando o ritmo em teus passos
queria te alcançar antes que a luz
pudesse deflagrar as evidĂȘncias
sabendo que a evidĂȘncia era mentira
e te queria plena nos meus braços
sentia esse cuidado que os enfermos
escondem na carĂȘncia de seus gestos
escondem? nĂŁo sei bem talvez excluam
por um acto de amor irremediĂĄvel
eu sou dos que vasados se acumulam
para reconquistar sem se perder
mas aqui ninguém påra
o fruto Ă© suave
se o queres partilhar fica comigo
Ontem PĂŽs-se o Sol
Ontem pĂŽs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora Ă© jĂĄ outro dia,
tudo torna, torna o sol;
sĂł foi a minha vontade,
para nĂŁo tornar câo tempo!TĂŽdalas cousas, per tempo,
passam, como dia e noute;
ua sĂł, minha vontade,
nĂŁo, que a dor comigo a aterra;
nela cuido em quanto hĂĄ sol,
nela enquanto nĂŁo hĂĄ dia.Mal quero per um sĂł dia
a todo outro dia e tempo,
que a mim pĂŽs-se-me o sol
onde eu sĂł temia a noute;
tenho a mim sĂŽbre a terra,
debaxo minha vontade.Dentro na minha vontade
nĂŁo hĂĄ momento do dia
que nĂŁo seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pĂŽr Ă noute:
no milhor pon-se-me o sol!Primeiro nĂŁo haverĂĄ sol
que eu descanse na vontade.
Pon-se-me ua escura noute
sĂŽbre a lembrança de um dia…
Inda mal porque houve tempo
e porque tudo foi terra.Haver de ser tudo terra
quanto hĂĄ debaixo do sol
me descansa,
Ode aos Natais Esquecidos
Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memĂłria
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecĂveis.
Tinha comigo os cĂŁes e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidĂŁo dos quartos,
os cadernos invadidos pĂȘlos saberes inĂșteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava jĂĄ dentro do sono,
no territĂłrio dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingĂvel a clamar pela nossa paciĂȘncia,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma årvore sem nome.Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusÔes também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
arte poética
o poema nĂŁo tem mais que o som do seu sentido,
a letra p nĂŁo Ă© a primeira letra da palavra poema,
o poema Ă© esculpido de sentidos e essa Ă© a sua forma,
poema nĂŁo se lĂȘ poema, lĂȘ-se pĂŁo ou flor, lĂȘ-se erva
fresca e os teus lĂĄbios, lĂȘ-se sorriso estendido em mil
ĂĄrvores ou cĂ©u de punhais, ameaça, lĂȘ-se medo e procura
de cegos, lĂȘ-se mĂŁo de criança ou tu, mĂŁe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que nĂŁo
se escrevem, LĂȘ-se paĂs e mar e cĂ©u esquecido e
memĂłria, lĂȘ-se silĂȘncio, sim tantas vezes, poema lĂȘ-se silĂȘncio,
lugar que nĂŁo se diz e que significa, silĂȘncio do teu
olhar doce de menina, silĂȘncio ao domingo entre as conversas,
silĂȘncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silĂȘncio
de ti, pai, que morreste em tudo para sĂł existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema nĂŁo Ă© esta caneta de tinta preta, nĂŁo Ă© esta voz,
Natal Africano
NĂŁo hĂĄ pinheiros nem hĂĄ neve,
Nada do que Ă© convendonal,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz… Mas Ă© Natal.Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical.Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora Ășnica e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte Ă© sempre igual.NĂŁo hĂĄ pastores nem ovelhas,
Nada do que Ă© tradicional.
As oraçÔes, porém, são velhas
E a noite Ă© Noite de Natal.
O Andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi sĂł a vida mentida
De um futuro imaginado!Aqui Ă beira do rio
Sossego sem ter razĂŁo.
Este seu correr vazio
Figura, anĂŽnimo e frio,
A vida vivida em vĂŁo.A âspârança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha âsâprança,
Rola mais que o meu desejo.Ondas do rio, tĂŁo leves
Que nĂŁo sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam â verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.Gastei tudo que nĂŁo tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusĂŁo, que me mantinha,
SĂł no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.Leve som das ĂĄguas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava jĂĄ perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
O Trato
Era assim meu afecto
e assim Ă© que o conservo;
maduro na lembrança
e secreto e severo.
NĂŁo o pus (minha boca
altiva) em gesto ou voz;
meu sol no entanto era
muito mais sol.
NĂŁo o soubeste, e agora
se sabes, nĂŁo te dĂłi.
Se sabes, nĂŁo te move,
dizes, e em ti nĂŁo passou.
NĂŁo importa; do trato
nĂŁo fui eu quem faltou.
Meu caminho foi feito;
ai de quem nĂŁo amou.
A Lembrança
1
Não te afastes, lembrança, não te afastes!
Rosto, não te desfaças, assim,
como na morte!
Continuai a olhar-me, olhos enormes, fixos,
como um instante me olhastes!
LĂĄbios, sorri-me,
como me sorristes um instante!2
Ai, fronte minha, aperta-te;
nĂŁo deixes que se espalhe
sua forma fora do seu vaso!
Oprime o seu sorriso e o seu olhar,
até serem a minha vida interna!3
â Embora me esqueça de mim mesmo;
embora o meu rosto, de tanto o sentir, tome
a forma do seu rosto;
embora eu seja ela
e nela se perca a minha estrutura! â4
Oh lembrança, sĂȘ eu!
Tu â ela â sĂȘ lembrança inteira e Ășnica, para sempre;
lembrança que me olhe e me sorria
no nada;
lembrança, vida com minha vida,
feita eterna, apagando-me, apagando-me!Tradução de José Bento
Nunca EnvelhecerĂĄs
A tua cabeleira
Ă© jĂĄ grisalha ou mesmo branca?
Para mim Ă© toda loira
e circundada de estrelas.
Sobre ela
o tempo nĂŁo poisou
o inverno dos anos
que se escoam maldosos
insinuando rugas, fios brancos…Ao teu corpo colou-se
o vestido de seda,
como segunda pele;
entre os seios pequenos
viceja perene
um raminho de cravos…PĂ©talas esguias
emolduram-te os dedos…
E revoadas de aves
traçam ao teu redor
volutas de primavera.Nunca envelhecerĂĄs na minha lembrança!…
Biografia
Sou aquele a quem busco:
jamais encontrarei a minha sombra.
A noite me acompanha
e sei que luto
com a treva. Combato: sangue a sangue
e corpo a corpo.Rios sob o meu pulso
escapam ao destino atroz do sono:
durmo com a lembrança
de minha fuga
e o sĂłlido vazio das montanhas.
Sem horizontes.Avanço com a angĂșstia
prévia: a visão do derradeiro encontro.
Reconheço que canso.
Porque sou surdo:
só ouço a minha voz quando alguém chama
alguém que é outro.Reconheço um segundo:
crio logo raĂzes e sou tronco
sem nenhuma esperança.
Espero tudo
e nĂŁo espero nada que nĂŁo ganhe
outro contorno.Sou aquele que do hĂșmus
liberta os pés e as pernas sem esforço
até saber que anda
imĂłvel. Fundas
sĂŁo minhas mĂŁos e afundam por instantes.
Encolho os ombros.
Burgo
Meu velho burgo dormido
meu berço de heras
poeira hĂșmida
de secos orvalhos
minha lembrança
de pressĂĄgios nĂŁo cumpridos
Meu regaço de penas
minha brisa alada
burgo meu cais
donde nĂŁo parto nem volto
aceno de asa
sem mastros de largada
minha ĂĄgua
de sede crestada
burgo meu destino
de fugir e restar
sem haver partido.
Doente
Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d’olhar cĂĄlido…
E os velhos, quando passo, vendo-me tĂŁo pĂĄlido,
Comentam entre si: – coitado, estĂĄ por pouco!…Por isso tenho Ăłdio a quem tiver saĂșde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E sĂł estou contente ouvindo um alaĂșde.Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrĂĄrio talvez daquilo que pareço…EspĂrito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criaçÔes,
E se nĂŁo bebo absinto Ă© porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidÔes.E amando doudamente as formas incompletas
Que Ă s vezes nĂŁo consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar…SĂŁo filhos do meu tĂ©dio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Visio
Eras pĂĄlida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espĂĄduas caĂam…
Os olhos meio cerrados
De volĂșpia e de ternura
Entre lĂĄgrimas luziam…
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam…Depois, naquele delĂrio,
Suave, doce martĂrio
De pouquĂssimos instantes,
Os teus lĂĄbios sequiosos,
Frios, trĂȘmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes…Depois… depois a verdade,
A fria realidade,
A solidĂŁo, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei… silĂȘncio de morte
Respirava a natureza â
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
LĂĄbios trĂȘmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.E agora te vejo. E fria
TĂŁo outra estĂĄs da que eu via
Naquele sonho encantado!