Nada Nos Falta, porque Nada Somos
Ao longe os montes tĂŞm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.Hoje, Neera, nĂŁo nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
NĂŁo esperamos nada
E temos frio ao sol.Mas tal como Ă©, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.
Poemas
2662 resultadosGazel do Amor Maravilhoso
Com todo o gesso
dos campos maus,
eras junco de amor, jasmim molhado.Com o sol e chama
dos céus malvados,
eras rumor de neve por meu peito.Céus e campos
prendiam correntes em minhas mãos.Campos e céus
açoitavam as chagas do meu corpo.Tradução de Oscar Mendes
AusĂŞncia
Por muito tempo achei que a ausĂŞncia Ă© falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje nĂŁo a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausĂŞncia Ă© um estar em mim.
E sinto-a, branca, tĂŁo pegada, aconchegada nos meus
[braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausĂŞncia, essa ausĂŞncia assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Se penso mais que um momento
Se penso mais que um momento
Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou nĂŁo tive,Deixarei de ser visĂvel
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensĂvel,
Ou ébrio de outro arrebol,Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mĂŞs a mĂŞs e ano a ano.Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lambra-nos que isso Ă© disfarce
E que Ă© a noite que Ă© tudo.
Bolor
Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.
Coração sem Imagens
Deito fora as imagens.
Sem ti, para que me servem
as imagens?Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em qualquer parte
e cuja direcção
Ă© igualmente passageira
e verĂdica.Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisĂveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a nĂŁo ser eu.Serei feliz sem as imagens.
As imagens nĂŁo dĂŁo
felicidade a ninguĂ©m.Era mais difĂcil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.Era mais difĂcil inventar-te,
e eu te inventei.Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.E hei-de ser feliz ainda que
isso nĂŁo seja ser feliz.
Endechas a Bárbara escrava
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.U~a graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem Ă© cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vĂŁo
Perde opiniĂŁo
Que os louros sĂŁo belos.PretidĂŁo de Amor,
TĂŁo doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidĂŁo,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta Ă© a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.
Carta a um «Amor»
Recordo, Margarida, as tardes quando
Cata no MarĂŁo o Sol de Julho!
Meu ranchinho de rolas rorolando,
Vós éreis meu orgulho.O ar como um veludo, os ares tão macios,
Ó tardes do jardim! à fonte da água, aos fios,
Ăamos todos nĂłs era tĂŁo alegre bando
Que desde que eu o nĂŁo sinto
Sou como um corpo extinto,
NĂŁo sinto ora nem quando.E estar de vĂłs tĂŁo longe
Cá neste meu terreno onde pareço um monge,
Sem uma linha, um verso
Desse Corgo sem par, a boa e madre
Terra como outra assim não haverá,
Montanhas que no Céu têm aquase o berço!
Escreve, Margarida, ao teu compadre,
Vá!Quero que diga
Florinda como vai, e vai assim Loreto,
Lindo pajem, que linda em seu veludo preto!
E os mais amorzinhos, rapariga,
Os que tua amizade aà me deu!Na alma dum poeta, vê-se nela o céu:
E assim
A tudo, Margarida, o que o prendeu
Arrecada-o na vida, e para a morte.
Escreve mal, e daĂ,
SilĂŞncio, Nostalgia…
SilĂŞncio, nostalgia…
Hora morta, desfolhada,
sem dor, sem alegria,
pelo tempo abandonada.Luz de Outono, fria, fria…
Hora inĂştil e sombria
de abandono.
Não sei se é tédio, sono,
silêncio ou nostalgia.Interminável dia
de indizĂveis cansaços,
de funda melancolia.
Sem rumo para os meus passos,
para que servem meus braços,
nesta hora fria, fria?
Calçada de Carriche
LuĂsa sobe,
sobe a calçada,
sobe e nĂŁo pode
que vai cansada.
Sobe, LuĂsa,
LuĂsa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mĂŁo grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, LuĂsa,
LuĂsa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.LuĂsa Ă© nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, LuĂsa.
LuĂsa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, LuĂsa,
LuĂsa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.Chegou a casa
nĂŁo disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito Ă casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se Ă pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
As MĂŁos do Meu Pai
As tuas mĂŁos tĂŞm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor de terra
— como são belas as tuas mãos —
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram
na nobre cĂłlera dos justos…Porque há nas tuas mĂŁos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrĂvel solidĂŁo do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendĂŞ-los contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mĂŁos.E Ă©, ainda, a vida
que transfigura das tuas mĂŁos nodosas…
essa chama de vida — que transcende a prĂłpria vida…
e que os Anjos, um dia, chamarĂŁo de alma…
Teoria da Presença de Deus
Somos seres olhados
Quando os nossos braços ensaiarem um gesto
fora do dia-a-dia ou nĂŁo seguirem
a marca deixada pelas rodas dos carros
ao longo da vereda marginada de choupos
na manhĂŁ inocente ou na complexa tarde
repetiremos para nĂłs prĂłprios
que somos seres olhadosE haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo
E onde quer que estejamos será sempre um terraço
a meia altura
com os ao longe por muito tempo estudados
perfis do monte mário ou de qualquer outro monte
o melhor sĂtio para saber qualquer coisa da vida
O Procurador do Amor
Amor, a quanto me obrigas.
De dorso curvo e olhar aceso,
troto as avenidas neutras
atrás da sombra que me inculcas.Esta sombra que se confunde
com as mulheres gordas e magras,
entra numa porta, sai por outra
como nos filmes americanos,
e reaparece olhando as vitrinas.Meu olhar desnuda as passantes.
Ă€s vezes um bico de seio
vale mais que o melhor Baedeker.
Mas onde seio para minha sede?O andar, a curva de um joelho,
vinco de seda no quadril
(nĂŁo sabia quanto eras pura),
faço a polĂcia dos dessous.Eu sei que o ĂŞxtase supremo,
o looping no céu espiritual
pode enredar-se, malicioso,
no que as mulheres mais (?) escondem
no que meus olhos mais indagam.O dia se emenda com a noite
As mulheres vĂŁo para a rua
mas a mulher que tu me destinas
talvez ainda esteja em Peiping.Desiludido ainda me iludo.
Namoro a plumagem do galo
no ouro pérfido do coquetel.
Enquanto as mulheres cocoricam
os homens engolem veneno.
Passo Triste no Mundo
Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E mĂstico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh’Alma do profundo
Abismo do seu Ser.Vivo de Mim, em Mim, e para Mim,
E para Deus em Mim ressuscitado,
Sou Saudade do Longe donde vim,
E sou Ânsia do Longe, em que por fim
Serei transfigurado.Vivo de Deus, em Deus, e para Deus,
E minh’alma, sonâmbula, esquecida,
Nele fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sozinha, olhando os céus,
No caminho da Vida.Fui Outro, e, Outro sendo, Outro serei;
Outro vivendo a mĂstica beleza,
Por esta humana forma que encarnei,
Por lágrimas de sangue que chorei
Na terra da tristeza.EspĂrito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo, sem o ver,
Em esta pobre terra de pecado,
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser Ă© NĂŁo-Ser em Outro-Ser.
AscensĂŁo
Nunca estive tĂŁo perto da verdade.
Sinto-a contra mim,
Sei que vou com ela.Tantas vezes falei negando sempre,
esgotando todas as negações possĂveis,
conduzindo-as ao cerco da verdade,
que hoje, cĂ´ncavo tĂŁo cĂ´ncavo,sou inteiramente liso interiormente,
sou um aquário dos mares,
sou apenas um balĂŁo cheio dessa verdade do mundo.Sei que vou com ela,
sinto-a contra mim, –
nunca estive tĂŁo perto da verdade.
Memento por um coração que ladra
O
cĂŁo
que
mais
ganir
Ă©
francĂŞs,
eco
nostálgico
de
uma
Bretanha
em fĂşria,
uvas
sangrentas,
espelho
ratado
pelo
sĂtio
do umbigo.
Um
bicho
que
gane
merece
os
ardis
todos
e
sulfĂşricas
desgraças.
Dá-se
ao
animal
o
que
vier
do
medo
(rebuçado
com
buço
de
sapo)
e
as
máscaras
do
Lácio
passam.
EntĂŁo
ser
voada
flor
em chaga
ou
simples
cĂŁo
já
nĂŁo
atrapalha
nem
é trapaça.
Um
coração
que
ladra
tem
sempre
boa
raça.
Noite Afora
A quem devo dizer que em tua carne
se sobreleva o tempo e o duradouro,
mancha de Ăłleo no azul, alaga e intensifica
o contratempo a que chamei amor?A quem devo dizer dos meus perigos
quando, o corcel furioso, olhei ao longe
e nĂŁo vi mais limites que o oceano
nem mais convites que o das ondas frias?Como antepor o corte nas montanhas
— Liberdade — ao dever que a si mesma impõe a terra
de estender-se conforme o espaço havido?MalĂcia do destino, ardil composto outrora…
Arde a grama da noite em que te vais embora,
e essa chama caminha, essa chama, essas vinhas,essas uvas, cortadas noite afora.
Melhor Vida Ă© a Vida que Dura sem Medir-se
NĂŁo quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.Se sabĂŞ-lo nĂŁo serve de sabĂŞ-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida Ă© a vida
Que dura sem medir-se.
Poema da Profundidade Horizontal
Pintem uma paisagem dentro de outra
porque nisso está a verdade.
Olhem como avançam cautelosamente
pela falésia a pique;
uma curta aprendizagem
na agulha da torre
bastou.
Olho-te como para uma lente de aumentar,
uma luz para mais iluminar,
como se fosses antes de haver luz
uma pedra preciosa,
a causa das guerras:
dorme sobre os joelhos
e sente
revir ao mesmo tempo
automaticamente
os braços superiores laterais
enferrujados,
como a luz do velho farol.
Beija os dez cães que há dentro de um cão vadio,
os cem homens que há dentro de um homem,
de tal maneira que
o ar fique em chamas
e seja a única salvação
a mĂŁo do mar eternamente
na nossa fronte.
Aceita o Universo
Aceita o universo
Como to deram os deuses.
Se os deuses te quisessem dar outro
Ter-to-iam dado.Se há outras matérias e outros mundos
Haja.