Vida
Três votos fará aquele
que não ser tolo decida
e venha deles primeiro
o de obediência à vidaserá o segundo a vir
o de não querer ser rico
o muito passe de largo
o pouco lhe apure o biconão violar-se a si próprio
como principal o veja
alto ou baixo gordo ou magro
assim nasceu assim seja.
Poemas
2662 resultadosUm dia
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Cântico ao Amor
Somos na obra do Mundo
um corpo em carne e desejo
que alimenta de alquimia
o tumulto do vento
que o tempo do teu corpo espalha
ao passar.És mar,
és rainha
és o sol da tarde confidente
és acácia perfumada
companheira coroada
voz de inquietação
és insónia de seda
nas paredes do meu corpo.
Sulcas a lembrança
batalhas a meu lado
vives comigo às escondidas
mesmo no dia
do meu suicídio.Recordas-me a tarde
nos Champs Elysées
mas também em Roma, Veneza ou Madrid
minha companheira coroada
minha acácia perfumada
trazes a tarde incendiada trazes
a tarde no teu olhar
lembras a praia
onde nas ondas mergulhámos,
vem contigo a madrugada
beijada de carícias,
meus olhos não se cansam
são fruto do teu reino
oh sempre bela
oh sempre rainha,
tua palavra determinante
tuas mãos determinadas
tua alma vibrante
tua boca de eternidade
minha acácia perfumada
minha coluna rainha
falas comigo baixinho
dás-me tua vontade em surdina.
Em Tudo quanto Olhei Fiquei em Parte
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.
Despedida
Amanhece
e no espreguiçar dos olhos
absorvo a tontura do novo dia.Ao sair do quarto
atravesso o branco sujo da manhã
e vou tomar café com muito açúcar.Levo um pastel de Tentúgal para a varanda
e mastigo-o ouvindo as harpas da cidade.E quando tu chegas de roupão
bebendo o teu cacau
explico-te o horizonte com barcos.
Contemplo o que não Vejo
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
Amor Pacífico e Fecundo
Não quero amor
que não saiba dominar-se,
desse, como vinho espumante,
que parte o copo e se entorna,
perdido num instante.Dá-me esse amor fresco e puro
como a tua chuva,
que abençoa a terra sequiosa,
e enche as talhas do lar.
Amor que penetre até ao centro da vida,
e dali se estenda como seiva invisível,
até aos ramos da árvore da existência,
e faça nascer
as flores e os frutos.
Dá-me esse amor
que conserva tranquilo o coração,
na plenitude da paz!Tradução de Manuel Simões
Não Temos Mais Decerto que o Instante
Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve
Sua face, Saturno.
Sua severa fronte reconhece
Só o lugar do futuro.
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.
Amor o Quis assim
Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.
Dezasseis Anos, Talvez
Dezasseis anos, talvez.
Vejo-a, no café, cada manhã,
A folhear, atenta, um compêndio de inglês,
Com um perfume a Escola e a maçã.Não me canso de a olhar. Às vezes, olha
(Um velho!), num desvio de atenção,
E logo volta a folha,
Enquanto molha
o bolo no «galão».Eu saio, com pesar, bebida a «bica».
Ela é a minha manhã,
Tão natural, tão clara… que ali fica.– Que saudades da Escola! Que fome de maçã!
O Divino
Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conhecemos.Glória aos incógnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhes iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer naqueles!Pois insensível
É a natureza:
O sol ‘spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A lua e as ‘strelas.Vento e torrentes,
Trovão e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um após outro.Tal a sorte às cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.Por eternas leis,
Grandes e de bronze,
Temos todos nós
De fechar os círculos
Da nossa existência.Mas somente o homem
Pode o impossível:
Só ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,
Os Anos de Ti para Mim
O teu cabelo volta a ondular-se quando choro. Com o azul dos
teus olhos
pões a mesa do nosso amor: uma cama entre o verão e o
outono.
Bebemos o que alguém preparou, que não era eu, nem tu, nem
um terceiro:
sorvemos um último vazio.Miramo-nos nos espelhos do mar profundo e passamos mais
depressa um ao outro os alimentos:
a noite é a noite, começa com a manhã,
é ela que me deita a teu lado.Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno
Pesada Noite
A noite cai de bruços,
cai com o peso fundo do cansaço,
cai como pedra, como braço,
cai como um século de cera,
aos tombos, aos soluços,
entre a maçã maciça e a perene pêra,
entre a tarde e o crepúsculo,
dilatação da madrugada, elástica,
cai, de borracha,
imitação de músculo,
cai, parecendo que se agacha
na sombra, e feminina, e ágil
salta, com molas de ginástica
nos pés, o abismo
do presságio,
a noite, essa mandíbula do trismo,
tétano e espasmo,
ao mesmo tempo, a noite
amorosa, à espreita do orgasmo,
ferina, mas também açoite,
contraditória
como existir esquecimento
no íntimo do homem,
na intimidade viva da memória,
reminiscências que o consomem
fugindo com o vento,
a noite, a noite acata
tudo que ocorre,
tanto aquele que mata
quanto aquele que morre,
a noite, a sensação e aguda
de um sono
fechando os olhos, invencível
como fera que estuda
a vítima, abandono
completo, fuga, salto
nas garras do impossível,
a noite pétrea do basalto,
As Mãos que se Procuram
Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medidaAs mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesasA pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto o outro rosto desafiaA carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.[Amor Condusse Noi Ad Una Morte]
Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas
Estão todas as verdades
à espera em todas as coisas:
não apressam o próprio nascimento
nem a ele se opõem,
não carecem do fórceps do obstetra,
e para mim a menos significante
é grande como todas.
(Que pode haver de maior ou menor
que um toque?)Sermões e lógicas jamais convencem
o peso da noite cala bem mais
fundo em minha alma.(Só o que se prova
a qualquer homem ou mulher,
é que é;
só o que ninguém pode negar,
é que é.)Um minuto e uma gota de mim
tranquilizam o meu cérebro:
eu acredito que torrões de barro
podem vir a ser lâmpadas e amantes,
que um manual de manuais é a carne
de um homem ou mulher,
e que num ápice ou numa flor
está o sentimento de um pelo outro,
e hão-de ramificar-se ao infinito
a começar daí
até que essa lição venha a ser de todos,
e um e todos nos possam deleitar
e nós a eles.
A Lenta Idéia Voa
Solene passa sobre a fértil terra
A branca, inútil nuvem fugidia,
Que um negro instante de entre os campos ergue
Um sopro arrefecido.Tal me alta na alma a lenta idéia voa
E me enegrece a mente, mas já torno,
Como a si mesmo o mesmo campo, ao dia
Da imperfeita vida.
A Festa do Silêncio
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
Poema do homem-rã
Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.
A verdade é que fomos
A verdade é que fomos
feitos do mesmo sangue
violento e humildeA verdade é que temos
ambos a graça de compreender
todos os homens e todas as estrelasA verdade é que Deus
nos ensinou
que este é o tempo da razão ardente.Deus hoje deu-me um pouco
do que toda a vida lhe pedi
foi esta calma e simples aceitação
de que é preciso que estejas
longe de mim
para que amando eu possa conservar
o meu coração puro.As ruas hoje pareciam mais largas
e mais clarasAs casas e as pessoas
pareciam diferentesFoi só o tempo de pedir a Deus
que prolongasse o generoso engano.Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justasE fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.O amor substitui
o Sol — que tudo ilumina.Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás-de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonhaVês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua almaPor que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?
Loira
Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,