Noites Gélidas
Merina
Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingênua e delicada.
Passagens sobre Rosto
553 resultadosAmar é a Mais Alta Constelação
Aqui ficam as coisas.
Amar é a mais alta constelação.
Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.Os corpos
circulando
na varanda dos braços.É a mais alta constelação.
Enquanto houver um sorriso em seu rosto, haverá esperança em minha vida.
Nem Sequer Sou Poeira
Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino.
A Uma Dama.
Vês esse Sol de luzes coroado,
Em pérolas a Aurora convertida;
Vês a Lua, de estrelas guarnecida;
Vês o Céu, de planetas adornado?O céu deixemos: vês, naquele prado,
A rosa com razão desvanecida,
A açucena por alva presumida,
O cravo por galã lisonjeado?Deixa o prado: vem cá, minha adorada:
Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?Parece aos olhos ser de prata fina…
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.
É por Ti que Vivo
Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altivaPor ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prataSe guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solarOfereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto
A Noite Suavemente Descia
A noite
Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitádo
Até sonhei que morria.E via
Goivos e cravos aos mólhos;
Um Christo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco rôxo, cinzento,
Rendas, velludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumôr de vento em surdina,
Insenso, rézas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;
Vellas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu… devagar morrendo.O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem lagrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,
Estava todo coberto de lucto.Depois, anciosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadía;
Beijámo-nos doidamente…
– Era dia!E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram… e assim ficaram!…
XXXIII
Aqui sobre esta pedra, áspera, e dura,
Teu nome hei de estampar, ó Francelisa,
A ver, se o bruto mármore eterniza
A tua, mais que ingrata, formosura.Já cintilam teus olhos: a figura
Avultando já vai; quanto indecisa
Pasmou na efígie a idéia, se divisa
No engraçado relevo da escultura.Teu rosto aqui se mostra; eu não duvido,
Acuses meu delírio, quando trato
De deixar nesta pedra o vulto erguido;É tosca a prata, o ouro é menos grato;
Contemplo o teu rigor: oh que advertido!
Só me dá esta penha o teu retrato!
Esta Noite Morrerás
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma,
Ser Feliz é uma Responsabilidade Muito Grande
Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me. Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.
LXXIX
Entre este álamo, o Lise, e essa corrente,
Que agora estão meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o céu me vem pintando
A mágoa triste, que meu peito sente.Firmeza a nenhum deles se consente
Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.Na líquida porção, na vegetante
Cópia daquelas ramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:Quem não sabe, que a tua formosura
Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?
Quando Chegar esse Momento
Meu querido, que és o meu querido. Tanto que eu esperei por isto, meu amor bendito. Tantas noites acordada a olhar para o tecto do quarto, a noite inteira a passar tão devagarinho e eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. E agora, finalmente, finalmente. Em certos dias, eu até me parecia que… (passa a mão pelo rosto) Mas o que é que é preciso fazer, pensava eu. Se houvesse alguma coisa para fazer, eu tinha feito. Nem que fosse… Eu sei lá. Eu fiz tanta coisa, meu doce. E eu sempre a pensar: quando chegar esse momento, quando chegar esse momento. Eu até me parecia que… (passa a mão pelo rosto) Mas passou-se tudo. E agora, finalmente, finalmente. Dá cá um bocanço, meu santo amor. Dá cá o nosso primeiro bocanço de casados. Agora, podemos descansar, temos a vida toda à nossa frente.
(O tempo permanece suspenso e infinito.)
A Felicidade Está Fora da Nossa Realidade
O amoroso apaixonado já não vive em si, mas no que ama; quanto mais se afasta de si para se fundir no seu amor, mais feliz se sente. Assim, quando a alma sonha em fugir do corpo e renuncia a servir-se normalmente dos seus orgãos, podeis dizer com razão que ele enlouquece. As expressões correntes não querem dizer outra coisa: «Não está em si… Volta a ti… Ele voltou a si.» E quanto mais perfeito é o amor, maior a loucura e mais feliz.
Quem será, pois, essa vida no Céu, à qual aspiram tão ardentemente as almas piedosas? O espírito, mais forte e vitorioso, absorverá o corpo; isto será tanto mais fácil quanto mais purificado e extenuado tiver sido o corpo durante a vida. Por sua vez, o espírito será absorvido pela suprema Inteligência, cujos poderes são infinitos. Assim se encontrará fora de si mesmo o homem inteiro e a única razão da sua felicidade será de não mais se pertencer, mas de submeter-se a este soberano inefável, que tudo atrai a si.
Uma tal felicidade, é certo, só poderá ser perfeita no momento em que as almas, dotadas de imortalidade, retomem os antigos corpos. Mas, como a vida dos piedosos não é mais do que a meditação sobre a eternidade e como que a sombra dela,
Notícias do Bloqueio
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos…
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Tudo Muda uma Áspera Mudança
Tomava Daliana por vingança
Da culpa do pastor que tanto amava,
Casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
O erro alheio e pérfida esquivança.A discrição segura, a confiança
Das rosas que o seu rosto debuxava,
O descontentamento lhas mudava,
Que tudo muda uma áspera mudança.Gentil planta disposta em seca terra,
Lindo fruto de dura mão colhido,
Lembranças de outro amor e fé perjura,Tornaram verde prado em dura serra;
Interesse enganoso, amor fingido,
Fizeram desditosa a formosura.
A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento
a função do amor é fabricar desconhecimento
(o conhecido não tem desejo;mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescare os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver(que riem e choram)que sonham,criam e matam
enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:
pode não ser sempre assim;e eu digo
que se os teus lábios,que amei,tocarem
os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço,ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,
Senhora II
No calmo colo meus segredos pouso
Senhora que cavalga meu sendeiro.
Convoco vossa ajuda neste escorço
para viver a vida por inteiro.Não sei se o vero verbo em que repouso
vem me afogar no mais turvo atoleiro
mas sei pela certeza que em meu fosso
nunca se afunda o trato companheiro.Meu rosto depressivo de exilado
alberga-se em vossa aura na fadiga
trazendo o sal dos olhos marejados.Águas que são garoa da cantiga
de recorrentes gotas despejadas
as vossas mãos regando, amada e amiga.
Se duvidamos do coração da mulher, não temos ocasião para classificar o seu rosto.
Portugal
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.
Mãe e Filho
Primícias do meu amor!
Meu filhinho do meu seio
Tenro fruto que à luz veio
Como à luz da aurora a flor!Na tua face inocente,
De teu pai a face beijo,
E em teus olhos, filho, vejo
Como Deus é providente;Via em lâmina dourada
O meu rosto todo o dia,
E a minha alma não havia
De a ver nunca retratada?Quando o pai me unia à face
E em seus braços me apertava,
Pomba ou anjo nos faltava
Que ambos juntos abraçasse!Felizmente Deus que o centro
Vê da Terra e vê do abismo,
Que bem sabe no que eu cismo,
Na minha alma um altar viu dentro:Mas com lâmpada sem brilho,
Sem o deus a que era feito…
Bafeja-me um dia o peito,
E eis feito o meu gosto, filho!Como em lágrimas se espalma
Dor íntima e se esvaece
De alma o resto quem pudesse
Vazar todo na tua alma!Mas em ti minha alma habita!
Mas teu riso a vida furta…