Ariana
Ela Ă© o tipo perfeito da ariana,
Branca, nevada, pĂșbere, mimosa,
A carne exuberante e capitosa
Trescala a essĂȘncia que de si dimana.As nĂveas pomas do candor da rosa,
Rendilhando-lhe o colo de sultana,
Emergem da camisa cetinosa
Entre as rendas sutis de filigrana.Dorme talvez. Em flĂĄcido abandono
Lembra formosa no seu casto sono
A languidez dormente da indiana,Enquanto o amante pĂĄlido, a seu lado
Medita, a fronte triste, o olhar velado
No Mistério da Carne Soberana
Sonetos sobre Carne
89 resultadosUma AusĂȘncia de Mim
Uma ausĂȘncia de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
o chĂŁo que nĂŁo foi meu, na relva simples
o outro ser que sonhei se deita e cisma.Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
â e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo â
ou foi o sonho dos demais que sonho?A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um Ăłcio inĂștil
ergueu da sombra a minha carne, ou souum casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.
Salomé
InsĂłnia rĂŽxa. A luz a virgular-se em mĂȘdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segrĂȘdo…Tudo Ă© capricho ao seu redĂłr, em sombras fĂĄtuas…
O arĂŽma endoideceu, upou-se em cĂŽr, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!… A minh’Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estĂĄtuas…Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecĂŽa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:Mordoura-se a chorar–ha sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bĂŽca imperial que humanisou um Santo…
Mancebo Sem Dinheiro, Bom Barrete
Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
MedĂocre o vestido, bom sapato,
Meias velhas, calção de esfola-gato,
Cabelo penteado, bom topete.Presumir de dançar, cantar falsete,
Jogo de fidalguia, bom barato,
Tirar falsĂdia ao Moço do seu trato,
Furtar a carne Ă ama, que promete.A putinha aldeĂŁ achada em feira,
Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sĂĄtira elegante.Cartinhas de trocado para a Freira,
Comer boi, ser Quixote com as Damas,
Pouco estudo, isto Ă© ser estudante.
VolĂșpia Imortal
Cuidas que o genesĂaco prazer,
Fome do ĂĄtomo e eurĂtmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!NĂŁo! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!Surdos destarte a apĂłstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descamados,
Em convulsivas contorçÔes sensuais,Haurindo o gĂĄs sulfĂdrico das covas,
Com essa volĂșpia das ossadas novas
HĂŁo de ainda se apertar cada vez mais!
Ecce Homo
Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera herĂłis e homens e poetas.Pois deuses somos nĂłs. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.
Versos A Um Coveiro
Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal Ă©, sem complicados silogismos,
A aritmĂ©tica hedionda dos coveiros!Um, dois, trĂȘs, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fĂșlgidos letreiros,
Na progressĂŁo dos nĂșmeros inteiros
A gĂȘnese de todos os abismos!Oh! PitĂĄgoras da Ășltima aritmĂ©tica,
Continua a contar na paz ascética
Dos tĂĄbidos carneiros sepulcraisTĂbias, cĂ©rebros, crĂąnios, rĂĄdios e Ășmeros,
Porque, infinita como os prĂłprios nĂșmeros
A tua conta nĂŁo acaba mais!
Vénus
I
Ă flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razĂŁo se perde!PĂștrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.O seu esboço, na marinha turva…
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pĂ©s atrĂĄs, como voando…E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co’a salsugem.II
Singra o navio. Sob a ĂĄgua clara
VĂȘ-se o fundo do mar, de areia fina…
_ ImpecĂĄvel figura peregrina,
A distĂąncia sem fim que nos separa!Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparĂȘncia luminosa
Repousam, fundos, sob a ĂĄgua plana.E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrågios, perdiçÔes, destroços!
_ Ă fĂșlgida visĂŁo, linda mentira!RĂłseas unhinhas que a marĂ© partira…
Dentinhos que o vaivĂ©m desengastara…
Soneto Da Mulher E A Nuvem
A JoĂŁo Cabral de Melo Neto
Nuvem no céu do nunca, nem tão branca
– assim era o amor, Ă minha espreita,
e era a mulher, de nuvens sempre feita
e de véus e pudor que o amor arranca.Não pude amå-la, pois não era franca
a sua carne que o amor aceita,
nuvem que um céu de amor sempre atravanca
e entre praias e pùntanos se deita.Bruma de carne, em vão céu de tormento,
parindo fogo aos meus dezesseis anos,
assim foi ela, sem deixar seu nome.Nunca foi minha, e sĂł em pensamento
eu pude dar-lhe o amor de desenganos
que me deixou no corpo espanto e fome.