Apostrofe À Carne
Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o hĂşmus necrĂłfago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…E o Homem – negro e heterĂłclito composto,
Onde a alva flama psĂquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!Carne, feixe de mĂ´nadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,DĂłi-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!
Sonetos sobre Fogo
109 resultadosDomus Aurea
De bom amor e de bom fogo claro
Uma casa feliz se acaricia…
Basta-lhe luz e basta-lhe harmonia
Para ela nĂŁo ficar ao desamparo.O Sentimento, quando Ă© nobre e raro,
Veste tudo de cândida poesia…
Um bem celestial dele irradia,
Um doce bem, que nĂŁo Ă© parco e avaro.Um doce bem que se derrama em tudo,
Um segredo imortal, risonho e mudo,
Que nos leva debaixo da sua asa.E os nossos olhos ficam rasos d’água
Quando, rebentos de uma oculta mágoa,
São nossos filhos todo o céu da casa.
Soneto XV
Triste do que em tristeza passa o dia,
Feliz porém, se a passa, e enfim lhe passa,
Mas quem ventura teve tĂŁo escassa
Que em nada ache prazer nem alegria.Nos ais, alĂvio tem quem n’alma os cria,
A quem em trevas vive, a luz dá graça,
Há quem do fogo e Sol se satisfaça,
E quem se satisfaça d’água fria.Restaura o ar, na calma, o fraco alento,
Conforta o cheiro de ua flor suave,
Convida a sombra, a erva a grato assento,Suspende da Ave o canto a pena grave;
Ai que nĂŁo aliviam meu termento
Ais, luz, Sol, fogo, água, ar, flor, sombra, erva, Ave.
Ecce Homo
Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera herĂłis e homens e poetas.Pois deuses somos nĂłs. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.
N. H.
Tu não és de Romeu a doce amante,
A triste Julieta, que suspira,
Solto o cabelo aos ventos ondeante,
Inquietas cordas de suspensa lira.Não és Ofélia, a virgem lacrimante,
Que ao luar nos jardins vaga e delira,
E é levada nas águas flutuante,
Como em sonho de amor que cedo expira.És a estátua de mármore de rosa;
Galatéia acordando voluptuosa
Do grego artista ao fogo de mil beijos…És a lânguida JĂşlia que desmaia,
És Haidéia nos côncavos da praia;
Fosse eu o Dom JoĂŁo dos teus desejos!…
Único Remédio
Como a chama que sobe e que se apaga
Sobem as vidas a espiral de Inferno.
O desespero Ă© como o fogo eterno
Que o campo quieo em convulções alaga…Tudo Ă© veneno, tudo cardo e praga!
E al almas que tĂŞm sede de falerno
Bebem apenas o licor moderno
Do tédio pessimista que as esmaga.Mas a Caveira vem se aproximando,
Vem exótica e nua, vem dançando,
No estrambotismo lĂşgubre vem vindo.E tudo acaba entĂŁo no horror insano –
– Desespero do Inferno e tĂ©dio humano –
Quando, d’esguelha, a Morte surge, rindo…
Soneto Da Mulher E A Nuvem
A JoĂŁo Cabral de Melo Neto
Nuvem no céu do nunca, nem tão branca
– assim era o amor, Ă minha espreita,
e era a mulher, de nuvens sempre feita
e de véus e pudor que o amor arranca.Não pude amá-la, pois não era franca
a sua carne que o amor aceita,
nuvem que um céu de amor sempre atravanca
e entre praias e pântanos se deita.Bruma de carne, em vão céu de tormento,
parindo fogo aos meus dezesseis anos,
assim foi ela, sem deixar seu nome.Nunca foi minha, e sĂł em pensamento
eu pude dar-lhe o amor de desenganos
que me deixou no corpo espanto e fome.
Falavam-me de Amor
Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos mĂłveis e tu vinhas
solstĂcio de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.O fel que por nĂłs bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
sĂł tu ficaste a ti acostumado.
Respiro e Vejo
Respiro e vejo. A noite e cada sol
vĂŁo rompendo de mim a todo o instante,
tarde e manhĂŁ que sĂŁo tecido tempo,
chuva e colheita. O céu, repouso e vento.Vergel de aves. Vou entre viveiros,
a caçar com o olhar, passarinhagem
dos pequeninos sĂłis e das estrelas
que emigram neste céu de goiabeiras.mas sigo a jardinagem, podo o tempo,
o desgosto do espaço, a sombra e o fogo,
as florações da luz e da cegueira.E, no dia, suspensa cachoeira,
neste jogo sagrado, vivo e vejo
o que veio em meus olhos desenhado.