Canção do Mar Aberto
Onde puseram teus olhos
A mágoa do teu olhar?
Na curva larga dos montes
Ou na planura do mar?De dia vivi este anseio;
De noite vem o luar,
Deixa uma estrada de prata
Aberta para eu passar.Caminho por sobre as ondas
Não paro de caminhar.
O longe é sempre mais longe…
Ai de mim se me cansar!…Morre o meu sonho comigo,
Sem te poder encontrar
Sonetos Interrogativos
507 resultadosO Sarcófago
Senhor da alta hermenêutica do Fado
Perlustro o atrium da Morte… É frio o ambiente
E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcófago molhado!Ah! Ninguém ouve o soluçante brado
De dor profunda, acérrima e latente.
Que o sarcófago, ereto e imóvel sente
Em sua própria sombra sepultado!Dói-lhe (quem sabe?!) essa grandeza horrível
Que em toda a sua máscara se expande,
À humana comoção impondo-a, inteira…Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível
Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!
Depois Que O Som Da Terra, Que É Não Tê-Lo
Depois que o som da terra, que é não tê-lo,
Passou, nuvem obscura, sobre o vale
E uma brisa afastando meu cabelo
Me diz que fale, ou me diz que cale,A nova claridade veio, e o sol
Depois, ele mesmo , e tudo era verdade,
Mas quem me deu sentir e a sua prole?
Quem me vendeu nas hastas da vontade?Nada. Uma nova obliquação da luz,
Interregno factício onde a erva esfria.
E o pensamento inútil se conduzAté saber que nada vale ou pesa.
E não sei se isto me ensimesma ou alheia,
Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
A Rua Dos Cataventos – II
Dorme, ruazinha… E tudo escuro…
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilosDorme… Não há ladrões, eu te asseguro…
Nem guardas para acaso persegui-los…
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos…O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão…
Dorme, ruazinha… Não há nada…Só os meus passos… Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração…
Os Versos, que Cantei Importunado
Os versos, que cantei importunado
Da mocidade cega a quem seguia,
Queimei (como vergonha me pedia)
Chorando, por haver tão mal cantado.Se nestes não ficar tão desculpado
Quanto mais alto estilo merecia,
Não me podem negar a melhoria
Da mudança, que diz dum noutro estado.Que vai que sejam bem ou mal aceitos?
Pois não os escrevi para louvores
Humanos, pelo menos perigosos,Senão para plantar em tenros peitos
Desejos de colher divinas flores
À força de suspiros saudosos.
Ardor Em Firme Coração Nascido
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.Se és fogo, como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
Em Busca Da Beleza V
Braços cruzados, sem pensar nem crer,
Fiquemos pois sem mágoas nem desejos.
Deixemos beijos, pois o que são beijos?
A vida é só o esperar morrer.Longe da dor e longe do prazer,
Conheçamos no sono os benfazejos
Poderes únicos; sem urzes, brejos,
A sua estrada sabe apetecer.C’roado de papoilas e trazendo
Artes porque com sono tira sonhos,
Venha Morfeu, que as almas envolvendo,Faça a felicidade ao mundo vir
Num nada onde sentimo-nos risonhos
Só de sentirmos nada já sentir.
O Nosso Mundo
Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Pousando em ti o meu olhar eterno
Como pousam as folhas sobre os lagos…Os meus sonhos agora são mais vagos…
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno…
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas, hemos de bebê-la!Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?…
O mundo, Amor! … As nossas bocas juntas!…
Carta ao Mar
Deixa escrever-te, verde mar antigo,
Largo Oceano, velho deus limoso,
Coração sempre lyrico, choroso,
E terno visionario, meu amigo!Das bandas do poente lamentoso
Quando o vermelho sol vae ter comtigo,
– Nada é mais grande, nobre e doloroso,
Do que tu, – vasto e humido jazigo!Nada é mais triste, tragico e profundo!
Ninguem te vence ou te venceu no mundo!…
Mas tambem, quem te poude consollar?!Tu és Força, Arte, Amor, por excellencia! –
E, comtudo, ouve-o aqui, em confidencia;
– A Musica é mais triste inda que o Mar!
Quando Olho Para Mim Não Me Percebo.
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? SereiTal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
O Perfume
O que sou eu? – O Perfume,
Dizem os homens. – Serei.
Mas o que sou nem eu sei…
Sou uma sombra de lume!Rasgo a aragem como um gume
De espada: Subi. Voei.
Onde passava, deixei
A essência que me resume.Liberdade, eu me cativo:
Numa renda, um nada, eu vivo
Vida de Sonho e Verdade!Passam os dias, e em vão!
– Eu sou a Recordação;
Sou mais, ainda: a Saudade.
Versos A Um Cão
Que força pode, adstricta a ambriões informes,
Tua garganta estúpida arrancar
Do segredo da célula ovular
Para latir nas solidões enormes?!Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
Suficientíssima é, para provar
A incógnita alma, avoenga e elementar
Dos teus antepassados vermiformes.Cão! – Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
A escala dos latidos ancestrais. . .E irá assim, pelos séculos, adiante,
Latindo a esquisitíssima prosódia
Da angústia hereditária dos seus pais!
Bilhete
O teu vulto ficou na lembrança guardado,
vivo, por muitas horas!… e em meus olhos baços
Fitei-te – como alguém que ansioso e torturado
Tentasse inutilmente reavivar teus traços…Num relance te vi – depois, quase irritado
Fugi, – e reparei que ao marcar os meus passos
ia a dizer teu nome e a ver por todo lado
o teu vulto… o teu rosto… e o clarão dos teus braços!Talvez eu faça mal em querer ser sincero,
censurarás – quem sabe? Essa minha ousadia,
e pensarás até que minto, e que exagero…Ou dirás, que eu falar-te nesse tom, não devo,
que o que escrevo é infantil e absurdo, é fantasia,
e afinal tens razão… nem sei por que te escrevo!
Onde Porei Meus Olhos que não Veja
Onde porei meus olhos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que pera descansar parte me seja?já sei como s’engana quem deseja,
Em vão amor firme contentamento,
De que, nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est’alma sogigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, quanto mais me chego, menos vejo.
Quem?
Não sei quem és. Já não te vejo bem…
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!…)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?…
– Não sei se tu, amor, assim me vês!…
Nossos olhos não são nossos, talvez…
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!…És tudo e não és nada… És a desgraça…
És quem nem sequer vejo; és um que passa…
És sorriso de Deus que não mereço…És aquele que vive e que morreu…
És aquele que é quase um outro eu…
És aquele que nem sequer conheço…
Já Foste Rico e Forte e Soberano
Já foste rico e forte e soberano,
Já deste leis a mundos e nações,
Heróico Portugal, que o gram Camões
Cantou, como o não pôde um ser humano!Zombando do furor do mar insano,
Os teus nautas, em fracos galeões,
Descobriram longínquas regiões,
Perdidas na amplidão do vasto oceano.Hoje vejo-te triste e abatido,
E quem sabe se choras, ou então,
Relembras com saudade o tempo ido?Mas a queda fatal não temas, não.
Porque o teu povo, outrora tão temido,
Ainda tem ardor no coração.
Os Porquês do Amor
Céu, porque tão convulso e consternado
Me bate, ao Vê-la, o coração no peito?
Porque pasma entre os beiços congelado,
Indo a falar-lhe, o tímido conceito?Porque nas áureas ondas engolfado
Da caudalosa trança, inda que afeito,
Me naufraga o juízo embelezado,
E em ternura suavíssima desfeito?Porque a luz dos seus olhos, tão activa,
Por lânguida inda mais encantadora,
Me cega, e por a ver, ansioso, clamo?Porque da mão nevada sai tão viva
Chama, que me electriza e me devora?
Os mesmos meus porquês me dizem: – Amo!
Ah, Mas Aqui, Onde Irreais Erramos
Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
Enclausurada
Ó Monja dos estranhos sacrifícios,
Meu amor imortal, Ave de garras
E asas gloriosas, triunfais, bizarras,
Alquebradas ao peso dos cilícios.Reclusa flor que os mais revéis flagícios
Abalaram com as trágicas fanfarras,
Quando em formas exóticas de jarras
Teu corpo tinha a embriaguez dos vícios.Para onde foste, ó graça das mulheres,
Graça viçosa dos vergéis de Ceres
Sem que o meu pensamento te persiga?!Por onde eternamente enclausuraste
Aquela ideal delicadeza de haste,
De esbelta e fina ateniense antiga?!
O Coração
Que jogo jogas, comédia ou lágrima? Cor
suspensa. Prodígio doendo. Enganador
relâmpago. Donde se enreda esta coragem
que chora ao riso e ri à dor? Quatro sãoas pedras mestras do teu jogo. Dois cavalos
e os reis. Melancólicos actores. Vazia, a
plateia. O tempo ferido. O peão fugitivo.
A emoção real do presságio. O acenocordial do outro lado do jogo. Inscrição
única do pólen, jogada que se arrasta.
Gota de tédio na lonjura das casas.O fecho do jogo se conclui. Muda o rosto a
visão possível. Cordato, o lance destrói
a memória do que já não vejo ou sei.