Triunfo Supremo
Quem anda pelas lĂĄgrimas perdido,
SonĂąmbulo dos trĂĄgicoa flagelos,
Ă quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fĂșteis ouropĂ©is mais belos!Ă quem ficou no mundo redimido,
Expurgado dos vĂcios mais singelos
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!Ă quem entrou por todas as batalhas
As mĂŁos e os pĂ©s e o flanco ensangĂŒentado,
Amortalhado em todas as mortalhas.Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando!
Sonetos sobre Mortalhas
9 resultadosCharneca Em Flor
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frĂ©mito das coisas dolorosas…
Sob as urzes queimadas nascem rosas…
Nos meus olhos as lĂĄgrimas apago…Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E jĂĄ nĂŁo sou, Amor, Soror Saudade…Olhos a arder em ĂȘxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
Ăltimo Porto
Este o paĂs ideal que em sonhos douro;
Aqui o estro das aves me arrebata,
E em flores, cachos e festÔes, desata
A Natureza o virginal tesouro;Aqui, perpétuo dia ardente e louro
Fulgura; e, na torrente e na cascata,
A ĂĄgua alardeia toda a sua prata,
E os laranjais e o sol todo o seu ouro…Aqui, de rosas e de luz tecida,
Leve mortalha envolva estes destroços
Do extinto amor, que inda me pesam tanto;E a terra, a mĂŁe comum, no fim da vida,
Para a nudeza me cobrir dos ossos,
Rasgue alguns palmos do seu verde manto.
Nerah
(Inspirado no elegante conto de VirgĂlio VĂĄrzea)
A VĂtor LobatoNerah nĂŁo brinca mais, nĂŁo dança mais. — E agora
Que vĂŁo-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tĂmidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.Seus sonhos de cristal, translĂșcidos, antigos
Se vĂŁo embora, embora Ă vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os Ășmidos galernos —
— lembrando um roto bando informe de mendigos.NĂŁo canta o sabiĂĄ que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.Em tudo a fina seta aguda de afliçÔes!
Na própria atmosfera um caos de interjeiçÔes!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.
Errante
Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.Meu coração o mĂstico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…Meu coração nĂŁo chega lĂĄ decerto…
NĂŁo conhece o caminho nem o trilho,
Nem hĂĄ memĂłria desse sĂtio incerto…Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mĂŁe que viu partir o filho,
Como esse filho que nĂŁo voltou mais!
Noturno
Pesa o silĂȘncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitĂ©rio…
à frente, um vulto agita a caçoula do incenso.E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lågrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua…
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele em silĂȘncio, flutua
O lausperene mudo e sĂșplice das almas.
RenĂșncia
A minha mocidade hĂĄ muito pus
No tranquilo convento da tristeza;
LĂĄ passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mĂŁos em cruz…LĂĄ fora, a Noite, SatanĂĄs, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza…
E como um beijo ardente a Natureza…
A minha cela Ă© como um rio de luz…Fecha os teus olhos bem! NĂŁo vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra
Ă minha mocidade toda em flor!
Paz!
E a Vida foi, e Ă© assim, e nĂŁo melhora.
Esforço inutil, crĂȘ! Tudo Ă© illuzĂŁo…
Quantos nĂŁo scismam n’isso mesmo a esta hora
Com uma taça, ou um punhal na mão!Mas a Arte, o Lar, um filho, Antonio? Embora!
Chymeras, sonhos, bolas de sabĂŁo.
E a tortura do além e quem lå mora!
Isso Ă©, talvez, minha unica afflicção…Toda a dor pode suspportar-se, toda!
Mesmo a da noiva morta em plena boda,
Que por mortalha leva… essa que traz…Mas uma nĂŁo: Ă© a dor do pensamento!
Ai quem me dera entrar n’esse convento
Que ha além da Morte e que se chama A Paz!
Apostrofe Ă Carne
Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgĂąnica batalha:
– Olhos que o hĂșmus necrĂłfago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…E o Homem – negro e heterĂłclito composto,
Onde a alva flama psĂquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!Carne, feixe de mĂŽnadas bastardas,
Conquanto em flĂąmeo fogo efĂȘmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,DĂłi-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!