Pensar o Meu País
Pensar o meu país. De repente toda a gente se pôs a um canto a meditar o país. Nunca o tínhamos pensado, pensáramos apenas os que o governavam sem pensar. E de súbito foi isto. Mas para se chegar ao país tem de se atravessar o espesso nevoeiro da mediocralhada que o infestou. Será que a democracia exige a mediocridade? Mas os povos civilizados dizem que não. Nós é que temos um estilo de ser medíocres. Não é questão de se ser ignorante, incompetente e tudo o mais que se pode acrescentar ao estado em bruto. Não é questão de se ser estúpido. Temos saber, temos inteligência. A questão é só a do equilíbrio e harmonia, a questão é a do bom senso. Há um modo profundo de se ser que fica vivo por baixo de todas as cataplasmas de verniz que se lhe aplicarem. Há um modo de se ser grosseiro, sem ao menos se ter o rasgo de assumir a grosseria. E o resultado é o ridículo, a fífia, a «fuga do pé para o chinelo». O Espanhol é um «bárbaro», mas assume a barbaridade. Nós somos uns campónios com a obsessão de parecermos civilizados. O Francês é um ser artificioso,
Textos sobre Civilização
95 resultadosÉ Preciso Restaurar o Homem
A minha civilização repousa sobre o culto do Homem através dos indivíduos. Teve o desígnio, durante séculos, de mostrar o Homem, assim como ensinou a distinguir uma catedral através das pedras. Pregou esse Homem que dominava o indivíduo…
Porque o Homem da minha civilização não se define através dos homens. São os homens que se definem através dele. Há nele, como em todo o Ser, qualquer coisa que os materiais que o compõem não explicam. Uma catedral é uma coisa muito diferente de uma soma de pedras. É geometria e arquitectura. Não são as pedras que a definem, é ela que enriquece as pedras com o seu próprio significado. Essas pedras ficam enobrecidas por serem pedras de uma catedral. As pedras mais diversas servem a sua unidade. A catedral as absorve, até às gárgulas mais horrendas, no seu cântico.
Mas, pouco a pouco, esqueci a minha verdade. Julguei que o Homem resumia os homens, tal como a Pedra resume as pedras. Confundi catedral e soma de pedras, e, pouco a pouco, a herança desvaneceu-se. É preciso restaurar o Homem. Ele é a essência da minha cultura. Ele é a chave da minha Comunidade. Ele é o princípio da minha vitória.
A Avaliação de uma Civilização
Quando já se viveu por muito tempo numa civilização específica e com frequência se tentou descobrir quais foram as suas origens e ao longo de que caminho ela se desenvolveu, fica-se às vezes tentado a voltar o olhar para outra direção e indagar qual o destino que a espera e quais as transformações que está fadada a experimentar. Logo, porém, se descobre que, desde o início, o valor de uma indagação desse tipo é diminuído por diversos fatores, sobretudo pelo facto de apenas poucas pessoas poderem abranger a actividade humana em toda a sua amplitude. A maioria das pessoas foi obrigada a restringir-se a somente um ou a alguns dos seus campos. Entretanto, quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se o seu juízo sobre o futuro. E há ainda uma outra dificuldade: a de que precisamente num juízo desse tipo as expectativas subjectivas do indivíduo desempenham um papel difícil de avaliar, mostrando ser dependentes de factores puramente pessoais de sua própria experiência, do maior ou menor optimismo da sua atitude para com a vida, tal como lhe foi ditada pelo seu temperamento ou pelo seu sucesso ou fracasso. Finalmente, faz-se sentir o facto curioso de que,
Estatuto e Eternidade
Não me entendes, caríssimo Sebastião: dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização, dizes. E eu rio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com o meu riso, cuidando, como tanto se cuida naquilo a que chamas a nossa civilização, que me rio de ti. Querido Sebastião, rio-me porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e apenas como uma outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair dele. É isso que vejo, Sebastião.
Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude –
A Falsa Sabedoria Política
É reduzido o número daqueles que vêem com os seus próprios olhos e sentem com o próprio coração. Mas da sua força dependerá que os homens tendam ou não a cair no estado amorfo para onde parece caminhar hoje uma multidão cega.
Quem dera que os povos vissem a tempo, quanto terão de sacrificar da sua liberdade para escapar à luta de todos contra todos! A força da consciência e do espírito internacional demonstrou ser demasiado fraca. Apresenta-se agora superficialmente enfraquecida para consentir a formação de pactos com os mais perigosos inimigos da civilização. Existe, assim, uma espécie de compromisso, criminoso para a Humanidade, embora o considerem como sabedoria política.
Não podemos desesperar dos homens, pois nós próprios somos homens.
O Provincianismo Português (I)
Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do “Orpheu”, disse a Mário de Sá-Carneiro: “V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris,
O Homem Deveria ser a Medida de Tudo
O homem deveria ser a medida de tudo. De facto, ele é um estranho no mundo que criou. Não soube organizar este mundo para ele, porque não possuía um conhecimento positivo da sua própria natureza. O enorme avanço das ciências das coisas inanimadas em relação às dos seres vivos é, portanto, um dos acontecimentos mais trágicos da história da humanidade. O meio construído pela nossa inteligência e pelas nossas intenções não se ajusta às nossas dimensões nem à nossa forma. Não nos serve. Sentimo-nos infelizes. Degeneramos moralmente e mentalmente.
São precisamente os grupos e as nações em que a civilização industrial atingiu o apogeu que mais enfraquecem. Neles, o retorno à barbárie é mais rápido. Permanecem sem defesa perante o meio adverso que a ciência lhes forneceu. Na verdade, a nossa civilização, tal como as que a antecederam, criou condições em que, por razões que não conhecemos exactamente, a própria vida se torna impossível. A inquietação e a infelicidade dos habitantes da nova cidade têm origem nas instituições políticas, económicas e sociais, mas sobretudo na sua própria degradação. São vítimas do atraso das ciências da vida em relação às da matéria.
A Importância da Mulher no Progresso da Civilização
Se na história não procurarmos só uma data ou um facto descarnado, mas tentarmos nela descobrir alguma coisa mais, um princípio harmónico e as leis que governam esses factos, ainda nas suas menores evoluções, veremos que a história da civilização da mulher, do seu desenvolvimento e da sua moralidade, anda sempre ligada aos factos do desenvolvimento da civilização e da moralidade dos povos: veremos que aonde a sua condição se amesquinha, onde desce em dignidade, onde a mulher em vez do triplo e sagrado carácter de amante, esposa e mãe passa a ser escrava sem liberdade nem vontade, só destinada a saciar as paixões brutais dum senhor devasso, aí também veremos descer o nível da civilização e moralidade: à doçura dos costumes suceder a fereza e a brutalidade; e em vez do amor, essa flor do sentimento pura e recatada, só apareceram a paixão instintiva e brutal, necessidade puramente física do animal que obedece à lei da reprodução, à devassidão e à poligamia!
Civilização de Hipócritas
Existem infinitamente mais homens que aceitam a civilização como hipócritas do que homens verdadeiramente e realmente civilizados, e é lícito até perguntarmo-nos se um certo grau de hipocrisia não será necessário à manutenção e à conservação da civilização, dado o reduzido número de homens nos quais a tendência para a vida civilizada se tornou uma propriedade orgânica.
Sem lei – a civilização morre.
Vertigem Civilizacional Desumana
O homem não pode manter-se humano a esta velocidade, se viver como um autómato será aniquilado. A serenidade, uma certa lentidão, é tão inseparável da vida do homem como a sucessão das estações é inseparável das plantas, ou do nascimento das crianças. Estamos no caminho mas não a caminhar, estamos num veículo sobre o qual nos movemos incessantemente, como uma grande jangada ou como essas cidades satélites que dizem que haverá. E ninguém anda a passo de homem, por acaso algum de nós caminha devagar? Mas a vertigem não está só no exterior, assimilá-mo-la na nossa mente que não pára de emitir imagens, como se também fizesse zapping; talvez a aceleração tenha chegado ao coração que já lateja num compasso de urgência para que tudo passe rapidamente e não permaneça. Este destino comum é a grande oportunidade, mas quem se atreve a saltar para fora? Já nem sequer sabemos rezar porque perdemos o silêncio e também o grito.
Na vertigem tudo é temível e desaparece o diálogo entre as pessoas. O que nos dizemos são mais números do que palavras, contém mais informação do que novidade. A perda do diálogo afoga o compromisso que nasce entre as pessoas e que pode fazer do próprio medo um dinamismo que o vença e que lhes outurgue uma maior liberdade.
A Nossa Vida é Estilhaçada pelo Pormenor
Vivemos mesquinhamente, quais formigas, ainda que a fábula nos relate que há muito tempo atrás fomos transformados em homens; como os pigmeus lutamos com gruas; e é erro sobre erro, remendo sobre remendo, e a nossa melhor virtude decorre de uma miséria supérflua e evitável. A nossa vida é estilhaçada pelo pormenor.
Um homem honesto dificilmente precisa de contar para além dos seus dez dedos das mãos, acrescentando, em caso extremo, os seus dez dedos dos pés, e o resto que se amontoe. Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo: ocupai-vos de dois ou três afazeres, e não de cem ou mil; contai meia dúzia em vez de um milhão e tomai nota das receitas e despesas na ponta do polegar. A meio do agitado mar da vida civilizada, tantas são as nuvens, as tempestades, as areias movediças, tantos são os mil e um imprevistos a ser levados em conta, que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, um homem tem de ser um grande calculista para lograr êxito.
Simplificar, simplificar, simplificar. Em vez de três refeições por dia, se preciso for, comer apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduzir proporcionalmente as outras coisas.
A Paz Social
Não nos seduz nem satisfaz a riqueza, nem o luxo da técnica, nem a aparelhagem que diminua o homem, nem o delírio da mecânica, nem o colossal, o imenso, o único, a força bruta, se a asa do espírito os não toca e submete ao serviço de uma vida cada vez mais bela, mais elevada e nobre. Sem nos distrair da actividade que a todos proporcione maior porção de bens e com eles mais conforto material, o ideal é fugir ao materialismo do tempo: levar a ser mais fecundo o campo, sem emudecer nele as alegres canções das raparigas; tecer o algodão ou a lã no mais moderno tear, sem entrelaçar no fio o ódio de classe nem expulsar da oficina ou da fábrica o nosso velho espírito patriarcal.
Duma civilização que regressa cientificamente à selva separa-nos sem remissão o espiritualismo — fonte, alma, vida da nossa História. Fugimos a alimentar os pobres de ilusões, mas queremos a todo o transe preservar da onda que cresce no Mundo a simplicidade de vida, a pureza dos costumes, a doçura dos sentimentos, o equilíbrio das relações sociais, esse ar familiar, modesto mas digno da vida portuguesa — e, através dessas conquistas ou reconquistas das nossas tradições,
Os Homens sem Pé no seu Tempo
Das coisas tristes que o mundo tem, são os homens sem pé no seu tempo. Os desgraçados que aparecem assim, cedo de mais ou tarde de mais, lembram-me na vida terras de ninguém, onde não há paz possível. Imagine-se a dramática situação dum cavernícola transportado aos dias de hoje, ou vice-versa. A cada época corresponde um certo tipo humano. Um tipo humano intransponível, feito da unidade possível em tal ocasião, moldado psicològicamente, e fisiològicamente até, pelas forças que o rodeiam. A Idade Média tinha como valores Aristóteles e os doutores da Igreja. E qualquer espírito coevo, por mais alto que fosse, estava irremediàvelmente emparedado entre a Grécia sem Platão e as colunas do Templo. De nada lhe valia sonhar outro espaço de movimento. Cada inquietação realizava-se ali. O que seria, pois, um Vinci do Renascimento, multímodo, aberto a todos os conhecimentos, a bracejar dentro de tão acanhados muros?
Neste trágico século vinte, sem qualquer sério conteúdo ideológico, sem nenhuma espécie de grandeza fora do visceral e do somático, todo feito de records orgânicos e de conquistas dimensionais, que serenidade interior poderá ter alguém alicerçado em valores religiosos, estéticos, morais, ou outros? Nenhuma. Entre o abismo da sua impossibilidade natural de deixar de ser o que é,
Onde Estão os Cristãos?
O homem civilizado construiu um coche, mas perdeu o uso dos pés. Sustém-se com o auxílio de muletas, mas falta-lhe todo o apoio do músculo. Possui um belo relógio de Genebra, mas perdeu a habilidade de calcular as horas pelo sol. Seguro de que obterá no almanaque náutico de Greenwich a informação desejada quando dela carecer, o homem da rua não sabe reconhecer estrela nenhuma no céu. Não observa o solstício, nem tampouco o equinócio, e a sua mente não logra visualizar o quadrante do claro calendário do ano. O livro de notas prejudica-lhe a memória; as bibliotecas sobrecarregam-lhe a inteligência; a agência de seguros aumenta o número de acidentes; e talvez constitua um problema saber se a maquinaria não entorpece, se o refinamento não nos fez perder alguma energia, se o Cristianismo entrincheirado nas instituições e nos ritos não nos roubou o vigor da vida selvagem. Pois todo estóico era um estóico; mas, na