Personalidade e Individualidade
Todas as sociedades se têm esforçado por nos iludir e persuadir-nos a concentrar a nossa atenção na personalidade como se ela fosse a nossa individualidade. A personalidade é aquilo que nos é dado pelos outros. A individualidade é aquilo com que nascemos e é a natureza do nosso eu: não pode ser-nos dada por ninguém, nem pode ser-nos tirada por ninguém. A personalidade pode ser dada e tirada. Consequentemente, quando nos identificamos com a nossa personalidade, começamos a ter medo de perdê-la, e sempre que surge uma fronteira além da qual temos de nos fundir, a nossa personalidade recolhe-se. É incapaz de ir além dos limites do que conhece. Trata-se de uma camada muito fina, que nos é imposta. No amor profundo, evapora-se. Numa grande amizade, é impossível discerni-la.
A morte da personalidade nunca é absoluta em nenhum tipo de comunhão.
E nós identificamo-nos com a personalidade: os nossos pais, professores, vizinhos e amigos disseram-nos que somos assim, todos moldaram a nossa personalidade e lhe deram uma forma, fazendo de nós algo que não somos e que nunca poderemos ser. Por isso, somos infelizes, vivendo enclausurados nesta personalidade. É a nossa prisão. No entanto, também temos medo de sair dela,
Textos sobre Nus
28 resultadosO Homem é um Deus que se Ignora
Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe – dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuveado das visões do profeta esta outra palavra de consolação – dentro do homem está o reino dos céus. Profundo, altíssimo, acordo de dois génios tão distantes pela pátria, pela raça, pela tradição, por todos os abismos que uma fatalidade misteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, duma mesma família! Dos dois pólos extremos da história antiga, através dos mares insondáveis, através dos tempos tenebrosos, o génio luminoso e humano das raças índicas e o génio sombrio, mas profundo, dos povos semíticos se enviam, como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angústia do seu caos – o homem é um Deus que se ignora.
Grande, soberana consolação de ver essa luz de concórdia raiar do ponto do horizonte aonde menos se esperava, de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espíritos rivais cuja luta entristecia o mundo, ecoava como um tremendo dobre funeral no coração retalhado da humanidade antiga!
É Virtude Dissimular a Virtude
– Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo. Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.
A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio.
Os Nossos Verdadeiros Amores
Quando se é novo é sempre a somar. Somam-se amigos, emoções, experiências, livros, canudos, sítios, responsabilidades, preocupações e ambições, vícios e prazeres que não viciam.
Até cada ano de vida que se viveu é celebrado como se fosse uma proeza. É triunfalmente que se chega aos 6, 10, 14, 18 ou 22 anos. E com razão. Ainda consigo lembrar-me que eram obra.
Depois, não sei a que a idade (é aquela em que nos deixamos de importar tanto com as coisas, daí nunca darmos por ela), começamos a compreender a alegria e a liberdade de subtrair coisas e pessoas que só nos pesam, roubando-nos tempo, paciência e a calma necessária para sobrevivermos e que se vão tornando, monstruosa e deliciosamente, cada vez maiores.
O tempo de subtrair é cruel e frio e imensamente libertador. Dá vida aos últimos anos de vida que temos. Sim, porque a vida acaba. A morte acontece e, irritantemente, dura para sempre. Há quem diga que é como o tempo antes de nascermos (até um génio como Samuel Beckett caiu neste pensamento impreciso) mas não é. O tempo depois de morrermos é sempre pior do que o tempo antes de nascermos.
Uma Completa Fome por Ti
Anais,
Não esperes que continue são. Não vamos ser sensatos. Foi um casamento, em Louveciennes — não podes negá-lo. Voltei com pedaços de ti pegados a mim. Estou a andar, a nadar num oceano de sangue, o teu sangue andaluz, destilado e venenoso. Tudo o que faço e digo e penso tem a ver com o casamento. Vi-te como a senhora do teu lar, uma moura de cara pesada, uma negra com um corpo branco, olhos por toda a tua pele, mulher, mulher, mulher. Não consigo ver como conseguirei viver longe de ti — estas interrupções são uma morte. Como te pareceu quando o Hugo voltou? Eu continuava aí? Não consigo imaginar-te a moveres-te com ele como fizeste comigo. Pernas fechadas. Fragilidade. Doce, traiçoeira aquiescência. Docilidade de pássaro. Tornaste-te uma mulher comigo. Isso quase me aterrorizou. Não tens só trinta anos de idade… Tens mil anos de idade.
Aqui estou de volta e ainda fervilhando de paixão, como vinho a fermentar. Não uma paixão apenas da carne, mas uma completa fome por ti, uma fome devoradora. Leio no jornal acerca de suicídios e homicídios e compreendo-o perfeitamente. Sinto-me assassino, suicida. Sinto talvez ser uma desgraça nada fazer,
A Vida não Cabe numa Teoria
A vida… e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós.
Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.
As Chamadas Verdades Essenciais do Homem
As chamadas verdades essenciais do homem lembram-me às vezes números de um grande programa que os tambores anunciam pelas ruas fora que vai ser deslumbrante e cumprido à risca, e que os pobres actores, à noite, realizam sabe Deus como, a passar em claro cenas inteiras. A afirmar e a prometer, nenhum bicho leva a palma ao colega antropóide. Mas é vê-lo em plena representação, ou depois dela, no camarim, nu e lavado. Que miséria! A justiça imanente que pregou e demonstrou, acrescenta-lhe, por segurança, o ergástulo e o carrasco; ao pecado, junta-lhe a confissão; à predestinação, o livre arbítrio; à morte, a ressurreição. Lembra-me sempre a velha história dos castelos de heroísmo e fidelidade, com a portinha da traição disfarçada nas muralhas…
Jurai Sempre e a Propósito de Tudo
Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso do que nos que não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas.