Textos sobre Principais de Miguel Esteves Cardoso

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Textos de principais de Miguel Esteves Cardoso. Leia este e outros textos de Miguel Esteves Cardoso em Poetris.

Em Portugal, Ter Amor às Nossas Coisas Implica Dizer Mal Delas

Em Portugal, ter amor às nossas coisas implica dizer mal delas, já que a maior parte delas não anda bem. Nem uma coisa nem outra constitui novidade. Nem dizer mal delas, nem o facto de elas não andarem bem. Será que se diz mal na esperança de que elas se ponham boas? Também não. As nossas causas são quase sempre perdidas. Porquê então?

Porque o nosso maior bem, como António Vieira contradizia, é nunca estarmos satisfeitos. Nas nossas cabeças perversas e almas amarguradas, onde se acham todas as coisas portuguesas tal e qual achamos que deviam ser, Portugal é o país mais perfeito do mundo. Já isso é uma espécie de país, melhor do que os países reais onde as pessoas estão realmente convencidas que as coisas correm muito bem. Aprendemos a viver com esse país. E alguns conseguiram mesmo viver nele.

Desdenhar o que se tem e elogiar o que têm os outros, mas sem querer trocar, é a principal característica do aristocrático feitio do povo português. Às vezes penso que dizemos tanto mal de Portugal e dos portugueses para que não sejam os estrangeiros a fazê-lo. Monopolizamos a maledicência para nos defendermos; para evitar a concorrência.

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Tenho Saudades de Ti

Os dias contigo são dias inteiros que passam num instante. Tenho saudades de ti quando acordo, antes de perceber que já estás ali ao meu lado. Tenho saudades de ti de manhã enquanto espero que desças do banho. Fico bem a ler enquanto te espero, mas leio melhor quando estás ao pé de mim, quando já não me apetece ler.

Hoje foi mais um dia contigo e, mais uma vez, dou comigo aqui à noite, separado de ti, para escrever sobre o dia que se passou. E a coisa principal que aconteceu foi ter saudades de ti outra vez.

Bem sei que sei onde estás e que eu estou aqui a cinco passos de ti. Mas a maior certeza que tenho é que, apesar disso tudo, não estou contigo nem tu estás comigo. É o que me basta para ter saudades de ti. Não preciso de mais: se mais tivesse, morreria.

É verdade que estive contigo durante uma pequena parte do dia: aquela a que as pessoas tristes e habituadas chamam vida. Mas estava tão apaixonado e tão feliz que nem dei por isso.

Pensei apenas: “Conseguimos! Conseguimos estar juntos! Nem acredito!”

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O Principal Sinal de Humanidade

O principal sinal de humanidade é a maneira como os seres humanos tratam os animais. O ser realmente humano seria incapaz de tratar mal um animal. O ser realmente sensível e pensante, carinhoso por sentimento e prestável por sistema, teria a delicadeza da superioridade. Há-de reparar-se que as pessoas e as civilizações mais brutas são as que mais maltratam os animais. E preciso um mínimo de humanidade para se ter pena dos bichos. Os bichos não são gente, mas não têm culpa de não ser. Nós temos.
Por enquanto ainda tratamos os animais como os animais que somos. Tratamo-los como eles, caso mandassem nos seres humanos, nos tratariam a nós. Só que pior. Matamo-los, comemo-los, batemos-lhe, abandonamo-los. Tratamo-los como iguais porque ainda somos iguais a eles. Os animais tratam mal os animais diferentes deles. No dia em que formos superiores cuidaremos deles como deve ser.

O Peso Bruto da Irritação

Se fôssemos contabilizar as paixões desta vida, os ódios e os amores, os grandes sobressaltos, as comoções, os transtornos, os arrebatamentos e os arroubos, os momentos de terror e de esperança, os ataques de ansiedade e de ternura, a violência dos desejos, os acessos de saudade e as elevações religiosas e se as somássemos todas numa só sensação, não seria nada comparada com o peso bruto da irritação. Passamos mais tempo e gastamos mais coração a sermos irritados do que em qualquer outro estado de espírito.
Apaixonamo-nos uma vez na vida, odiamos duas, sofremos três, mas somos irritados pelo menos vinte vezes por dia. Mais que o divórcio, mais que o despedimento, mais que ser traído por um amigo, a irritação é a principal causa de «stress» — e logo de mortalidade — da nossa existência.
É a torneira que pinga e o colega que funga, a criança que bate com o garfinho no rebordo do prato, a empregada que se esquece sempre de comprar maionnaise, a namorada que não enche o tabuleiro de gelo, o namorado que se esquece de tapar a pasta dentrífica, a nossa própria incompetência ao tentar programar o vídeo, o homem que mete um conto de gasolina e pede para verificar a pressão dos pneus,

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