O homem não é um animal solitário, e enquanto perdura a vida em sociedade, a realização de si mesmo não pode ser o supremo princípio ético.
Passagens sobre Vida
6391 resultadosNão odeies pessoa alguma, nem mesmo os maus. Compadece-te deles, porque jamais conhecerão o único gozo que consola na vida: fazer o bem.
A Obra Nunca Está Concluída
Considera-se, muitas vezes, a obra de um criador como uma sequência de testemunhos isolados. Confunde-se então artista e literato. Um pensamento profundo está em perpétua formação, esgota a experiência de uma vida e nela se modela. Do mesmo modo, a criação única de um homem fortifica-se nos seus rostos sucessivos e múltiplos, que são as obras. Umas completam as outras, corrigem-as ou alcançam-as, contradizem-as também. Se alguma coisa termina a criação, não é o grito vitorioso e ilusório do artista, ofuscado: «Disse tudo», mas a morte do criador que fecha a sua experiência e o livro do seu génio.
Esse esforço, esta consciência sobre-humana, não aparece forçosamente ao leitor. Não há mistério na criação humana. É a vontade que faz esse milagre. Em todo o caso, não há verdadeira criação sem segredo. Sem dúvida, uma sequência de obras pode não passar de uma série de aproximações do mesmo pensamento. Mas podemos conceber outra espécie de criadores que procederiam por justaposição. As suas obras podem parecer sem relação entre si. Em certa medida, são contraditórias. Mas, colocadas de novo no seu conjunto, denunciam uma ordem. É, pois, da morte que recebem o seu sentido definitivo. Aceitam a sua luz mais clara da própria vida do seu autor.
Perpetuar o Silêncio
Já nada há de inofensivo. As pequenas alegrias, as manifestações da vida que parecem isentas da responsabilidade do pensamento não só têm um momento de obstinada estupidez, de autocegueira insensível, mas entram também imediatamente ao serviço da sua extrema oposição.
Até a árvore que floresce mente no instante em que se percepciona o seu florescer sem a sombra do espanto; até o “como é belo!” inocente se converte em desculpa da afronta da vida, que é diferente, e já não há beleza nem consolação alguma excepto no olhar que, ao virar-se para o horror, o defronta e, na consciência não atenuada da negatividade, afirma a possibilidade do melhor. É aconselhável a desconfiança perante todo o lhano, o espontâneo, em face de todo o deixa-andar que encerre docilidade frente à prepotência do existente.
O malevolente subsentido do conforto que, outrora, se limitava ao brinde da jovialidade, já há muito adquiriu sentimentos mais amistosos. O diálogo ocasional com o homem no combóio, que, para não desembocar em disputa, consente apenas numas quantas frases a cujo respeito se sabe que não terminarão em homicídio, é já um elemento delator; nenhum pensamento é imune à sua comunicação, e basta já expressá-lo num falso lugar e num falso acordo para minar a sua verdade.
Vida de Escritor
É fácil reconhecer em mim a concentração de todas as minhas forças sobre a escrita. Quando se tornou claro no meu organismo que escrever era a direcção mais produtiva que podia tomar o meu ser, tudo correu para esse lado e deixou-me vazio de todas as capacidades que se dirigiam para as alegrias do sexo, da comida, da bebida, da reflexão filosófica e, acima de tudo, da música. Eu atrofiava em todas estas direcções. Isto era necessário porque a totalidade das minhas forças é tão leve que só colectivamente é que elas podiam semi-servir a finalidade da minha escrita. É claro que não encontrei esta finalidade independentemente ou conscientemente, ela encontrou-se a si própria e só o escritório interfere com ela, e interfere completamente. De qualquer modo, eu não me devia queixar pelo facto de não conseguir ter uma namorada, de perceber exactamente tanto de amor como de música e de ter de me resignar nos esforços mais superficiais de que posso lançar mão, de na noite de fim de ano ter jantado escorcioneira e espinafres com um quarto de Ceres e de no domingo não ter podido participar na leitura que Max fez dos seus trabalhos filosóficos; a compensação de tudo isto é clara como o dia.
Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita, sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura.
A única exigência que faço aos meus leitores é que devem dedicar as suas vidas à leitura das minhas obras.
O Aborrecimento e a Agitação
Uma das características essenciais do aborrecimento consiste no contraste entre as circunstâncias presentes e outras mais agradáveis que exercem uma força irresistível sobre a imaginação. É também essencial que as faculdades do indivíduo não estejam inteiramente ocupadas. Fugir diante de inimigos que pretendem tirar-nos a vida, deve ser desagradável, mas certamente não é aborrecido. Um homem também não se sente aborrecido quando é executado, a não ser que tenha uma coragem quase sobre-humana. Da mesma maneira nunca ninguém bocejou ao pronunciar o seu primeiro discurso na Câmara dos Lordes, salvo o falecido duque de Devonshire, que por isso mesmo se tornou célebre. O aborrecimento é essencialmente um desejo frustrado de aventuras, não necessáriamente agradáveis, mas pelo menos de incidentes que permitam à vítima do tédio distinguir um dia dos outros dias. O oposto do aborrecimento é, numa palavra, não o prazer, mas sim a agitação.
Quando o olvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.
A civilização avançada envolve problemas árduos. Por isso, quanto maior o progresso, mais está ameaçada. A vida está cada vez melhor; porém, evidentemente, cada vez mais complicada.
Gritar
Aqui a acção simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e
[escreviam
Demasiado baixoFiz retroceder os limites do grito
A acção simplifica-se
Porque eu arrebato à morte essa visão da vida
Que lhe destinava um lugar perante mimCom um grito
Tantas coisas desapareceram
Que nunca mais voltará a desaparecer
Nada do que merece viverEstou perfeitamente seguro agora que o Verão
Canta debaixo das portas frias
Sob armaduras opostas
Ardem no meu coração as estações
As estações dos homens os seus astros
Trémulos de tão semelhantes seremE o meu grito nu sobe um degrau
Da escadaria imensa da alegriaE esse fogo nu que me pesa
Torna a minha força suave e duraEis aqui a amadurecer um fruto
Ardendo de frio orvalhado de suor
Eis aqui o lugar generoso
Onde só dormem os que sonham
O tempo está bom gritemos com mais força
Para que os sonhadores durmam melhor
Envoltos em palavras
Que põem o bom tempo nos meus olhosEstou seguro de que a todo o momento
Filha e avó dos meus amores
Da minha esperança
A felicidade jorra do meu gritoPara a mais alta busca
Um grito de que o meu seja o eco.
A vida é o paradigma das palavras.
É Impossível que o Tempo Actual não Seja o Amanhecer doutra Era
É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave.
A incerteza da morte é o grande suporte de todo o sistema da vida.
A Diagonal da Vida
Ao olharmos o caminho que percorremos na vida, ao abarcarmos o seu «erróneo curso labiríntico» (Fausto), não podemos deixar de ver muita felicidade malograda, muita desgraça atraída, e talvez facilmente exageremos nas repreensões a nós mesmos. O curso da vida não é certamente a nossa obra exclusiva, mas o produto de dois factores, a saber, a série dos acontecimentos e a das nossas decisões. Séries que sempre interagem e se modificam reciprocamente. Além disso, há o facto de que, em ambas, o nosso horizonte é sempre bastante limitado, na medida em que não podemos predizer com muita antecipação as nossas decisões e muito menos prever os acontecimentos; na verdade, de ambos conhecemos com justeza apenas os acontecimentos e decisões actuais.
Sendo assim, enquanto o nosso alvo está longe, não podemos dirigir-nos directamente para ele, mas só por aproximações e conjecturas, amiúde tendo de bordejar. Tudo o que conseguimos é tomar decisões sempre segundo a medida das circunstâncias presentes, na esperança de fazê-lo bem, para desse modo nos aproximarmos do alvo principal. Na maioria das vezes, portanto, os acontecimentos e as nossas intenções básicas são comparáveis a duas forças que agem em direcções opostas, sendo a diagonal resultante o curso da nossa vida.
Viver, conhecer a vida, é a mais leve, a mais subtil das aprendizagens. Não tem nada a ver com o conhecimento.
A vida humana é o maior desperdício económico da natureza: no momento em que poderíamos começar a tirar proveito da nossa experiência, morremos, e os que vêm a seguir voltam a começar do zero. Voltar a ensinar a criança a andar, levá-la à escola para que distinga uma circunferência de um quadrado, o amarelo do vermelho, o sólido do líquido, o duro do mole.
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.
Se a Vida Fosse Sempre Vida
Felizes, cujos corpos sob as árvores
Jazem na úmida terra,
Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem
Das doenças da lua.Verta Eolo a caverna inteira sobre
O orbe esfarrapado,
Lance Netuno, em cheias mãos, ao alto
As ondas estoirando.Tudo lhe é nada, e o próprio pegureiro
Que passa, finda a tarde,
Sob a árvore onde jaz quem foi a sombra
Imperfeita de um deus,Não sabe que os seus passos vão cobrindo
O que podia ser,
Se a vida fosse sempre vida, a glória
De uma beleza eterna.
Pela liberdade, assim como pela honra, pode-se e deve-se arriscar a vida.