Desigualdades Irremediáveis
Quem na sua prĂłpria juventude provou as misĂ©rias da pobreza, experimentou a insensibilidade e o orgulho dos ricos, encontra-se certamente ao abrigo da suspeita de incompreensĂŁo e de falta de boa vontade ante os esforços tentados para combater a desigualdade das riquezas e tudo quanto dela decorre. Na verdade, se esta luta invocar o princĂpio abstracto, e baseado na justiça, da igualdade de todos os homens entre si, será demasiado fácil objectar que a natureza foi a primeira, atravĂ©s da soberana desigualdade das capacidades fĂsicas e mentais repartidas pelos seres humanos, a cometer injustiças contra as quais nĂŁo há remĂ©dio.
Passagens sobre Abrigo
70 resultadosAbrigo Celeste
Estrela triste a refletir na lama,
Raio de luz a cintilar na poeira,
Tens a graça sutil e feiticeira,
A doçura das curvas e da chama.Do teu olhar um fluido se derrama
De tão suave, cândida maneira
Que Ă©s a sagrada pomba alvissareira
Que para o Amor toda a minh’alma chama.Meu ser anseia por teu doce apoio,
Nos outros seres sĂł encontra joio
Mas sĂł no teu todo o divino trigo.Sou como um cego sem bordĂŁo de arrimo
Que do teu ser, tateando, me aproximo
Como de um céu de carinhoso abrigo.
RuĂnas
I
E Ă© triste ver assim ir desfolhando,
VĂŞ-las levadas na amplidĂŁo do ar,
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar.Nem sabe a gente já como, nem quando,
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vĂŁo perdidas, vĂŁo boiando
Nesta corrente elĂ©ctrica do mar!…Ă“ ciĂŞncia, minha amante, Ăł sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo…
Nunca o teu lábio conheceu piedade!Mas caia embora o velho paraĂso,
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso,
Em nome do Direito e da Verdade.II
Morreu-me a luz da crença — alva cecém,
Pálida virgem de luzentas tranças
Dorme agora na campa das crianças,
Onde eu quisera repousar também.A graça, as ilusões, o amor, a unção,
Doiradas catedrais do meu passado,
Tudo caiu desfeito, escalavrado
Nos tremendos combates da razão.Perdida a fé, esse imortal abrigo,
Fiquei sozinho como herĂłi antigo
Batalhando sem elmo e sem escudo.A implacável, a rĂgida ciĂŞncia
Deixou-me unicamente a ProvidĂŞncia,
Adeus Tranças Cor de Ouro
Adeus tranças cor de ouro,
Adeus peito cor de neve!
Adeus cofre onde estar deve
Escondido o meu tesouro!Adeus bonina, adeus lĂrio
Do meu exĂlio de abrolhos!
Adeus, Ăł luz dos meus olhos
E meu tĂŁo doce martĂrio!Adeus meu amor-perfeito,
Adeus tesouro escondido,
E de guardado, perdido
No mais Ăntimo do peito.Desfeito sonho dourado,
Nuvem desfeita de incenso
Em quem dormindo sĂł penso,
Em quem sĂł penso acordado!VisĂŁo, sim, mas visĂŁo linda,
Sonho meu desvanecido!
Meu paraĂso perdido
Que de longe adoro ainda!Nuvem que ao sopro da aragem
Voou nas asas de prata,
Mas no lago que a retrata
Deixou esculpida a imagem!Rosa de amor desfolhada
Que n’alma deixou o aroma,
Como o deixa na redoma
Fina essĂŞncia evaporada!Gota de orvalho que o vento
Levou do cálix das flores,
Curto abril dos meus amores,
Primavera de um momento!Adeus Sol, que me alumia
Pelas ondas do oceano
Desta vida, deste engano,
Uma utilidade da ponte é dar abrigo aos miseráveis junto aos pilares.
Camões IV
Um dia, junto Ă foz de brando e amigo
Rio de estranhas gentes habitado,
Pelos mares aspérrimos levado,
Salvaste o livro que viveu contigo.E esse que foi Ă s ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca imortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.Assim, um homem só, naquele dia,
Naquele escasso ponto do universo,
LĂngua, histĂłria, nação, armas, poesia,Salva das frias mĂŁos do tempo adverso.
E tudo aquilo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.
Amor E Vida
Esconde-me a alma, no Ăntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.A crua e rija lâmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
Só findará quando findar-me a vida!Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu álgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ă“ meu sacro, Ăł meu Ăşnico tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!
O que Ă© o sexo senĂŁo o desejo de abrigo, de recolhimento nesse reduto rosado e macio: meter-se dentro de outro atravĂ©s de um dos seus orifĂcios, o desejo de regressar a esse lugar, ao oco interior, escuro e quente, embalado no lĂquido amniĂłtico, balouçando entre fleumas.
A Jovem Cativa
(André Chenier)
— “Respeita a foice a espiga que desponta;
Sem receio ao lagar o tenro pâmpano
Bebe no estio as lágrimas da aurora;
Jovem e bela também sou; turvada
A hora presente de infortúnio e tédio
Seja embora: morrer nĂŁo quero ainda!De olhos secos o estĂłico abrace a morte;
Eu choro e espero; ao vendaval que ruge
Curvo e levanto a tĂmida cabeça.
Se há dias maus, também os há felizes!
Que mel nĂŁo deixa um travo de desgosto?
Que mar nĂŁo incha a um temporal desfeito?Tu, fecunda ilusĂŁo, vives comigo.
Pesa em vão sobre mim cárcere escuro,
Eu tenho, eu tenho as asas da esperança:
Escapa da prisĂŁo do algoz humano,
Nas campinas do céu, mais venturosa,
Mais viva canta e rompe a filomela.Deve acaso morrer ? TranqĂĽila durmo,
TranqĂĽila velo; e a fera do remorso
NĂŁo me perturba na vigĂlia ou sono;
Terno afago me ri nos olhos todos
Quando apareço, e as frontes abatidas
Quase reanima um desusado jĂşbilo.Desta bela jornada Ă© longe o termo.
Porto inseguro
A liberdade bate Ă minha porta,
tĂŁo carente de mim, pedindo abrigo.
Quero ampará-la e penso que consigo
detê-la, mas seria tê-la morta.Livre para pairar num céu sem peias,
na solidĂŁo de um vĂ´o sem destino,
por que perder, nos olhos de águia, o tino,
vindo a quem se agrilhoa sem cadeias?Deusa das asas! Seu vagar escapa
a meus sentidos, seu desejo alcança
tudo que a mim se esconde atrás da capa.Vá embora daqui! Siga seu rumo!
Sou prisioneiro, um órfão da esperança
e arrasto um vĂ´o cego em chĂŁo sem prumo.