A Roda da Fortuna
Não se move a roda, sem que a parte que virou para o céu seja maior repuxo para tocar na terra, e a parte que se viu no ar erguida se veja logo da mesma terra pisada, sem outro impulso para descer, mais que com o mesmo movimento com que subiu; por isso a fortuna fez trono da sua mesma roda, porque, como na figura esférica se não conhece nela primeiro nem último lugar, nas felicidades andam sempre em confusão as venturas. Na dita com que se sobe, vai sempre entalhado o risco com que se desce. Não há estrela no céu que mais prognostique a ruína de um grande, que o levantar de sua estrela. Mais depressa se move aos afagos da grandeza que nos lisonjeia, do que aos desfavores com que a fortuna nos abate.
Quanto trabalharam os homens para subir, tantas foram as diligências que fizeram para se arruinarem; porque, como a fortuna (falo com os que não são beneméritos) não costuma subir a ninguém por seus degraus, em faltando degraus para a descida, tudo hão-de ser precipícios; e diferem muito entre si o descer e o cair. Se perguntarmos o por que caiu Roma, o maior império do Mundo,
Passagens sobre Céu
1151 resultadosVésper
Do seu fastígio azul, serena e fria,
Desce a noite outonal, augusta e bela;
Vésper fulgura além… Vésper! Só ela
Todo o céu, doce e pálida, alumia.De um mosteiro na cúpula irradia
Com frouxa luz… Em sua humilde cela,
Contemplativa e lânguida à janela,
Triste freira, fitando-a, se extasia…Vésper, envolta em deslumbrante alvura,
Ó nuvens, que ides pelo espaço afora!
A quem tão longo olhar volve da altura?Que olhar, irmão do seu, procura agora
Na terra o astro do amor? O olhar procura
Da solitária freira que o namora.
Amor
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.
Longe respira a vida. Aqui o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E vôos de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem. Fadas e duendes
agitam instrumentos na folhagem.Vibrátil, fina, imperceptível, fluída
orquestra ao longe. Ao fundo dos sentidos.
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
de Céus indefinidos.Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas sob a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.
Preciso de Ti para Ser Eu
Ser quem sou passa por ser capaz de criar ligações ao outro, com o outro e para o outro. Só há pessoas porque há relações. A minha existência é constituída pelos caminhos que sonho, construo e percorro, ao lado de outras pessoas que, como eu, sonham, constroem e percorrem os seus caminhos. Vontades distintas, dinâmica comum. Seguimos, cada um pelos seus princípios, cada um para os seus fins.
O amor leva o ser do seu autor ao ser do que é amado. Amar é ser e ser é amar. Partilhar-se com o outro e com o mundo, num milagre de multiplicação em que quanto mais se dá, mais se tem para dar, mais se é.
Um pequeno erro na base leva a potenciais tragédias nas conclusões. Há quem parta do princípio que o amor é recíproco. Ora, essa ideia simples acaba por ser origem de enormes tragédias pessoais. O amor não é recíproco, é pessoal, nasce no mais íntimo da nossa identidade. Não é metade de nada, é um todo. Precisa do outro como fim, não como princípio.
O amor é bondade generosa. É dar o bem. Dar-se. Conseguir ser fonte de amor é o maior dos bens que se pode alcançar.
O Amor não se Promete
Há uma distância fundamental entre as palavras e os gestos de cada homem. As palavras prometem mundos, os gestos constroem-nos. As palavras esclarecem pouco, os gestos definem quase tudo.
O amor é um projeto, uma construção que necessita de ser realizada a cada dia. Sem grandes discursos. Qualquer hora é tempo de amar. Se o amor é verdadeiro, não há tempos de descanso, porque o silêncio no coração dos que buscam lutar contra as trevas dos egoísmos é a paz mais profunda e o maior descanso… ainda que se cravem espinhos na carne, ainda que não sarem as feridas antigas, ainda que a esperança tenha pouco mais onde se apoiar do que nela própria.
Cada um de nós é aquilo que for capaz de ir construindo de firme e duradouro a cada dia por entre todas as tempestades da vida.
Há muito quem sonhe e passe o tempo a desejar o que não é… esperam e desesperam por algo que lhes há de chegar de fora… rejeitando quase tudo quanto são, quando, na verdade, é com o que temos e somos que devemos ser felizes, por pouco e por pior que seja… somos nós. Mas nós não somos quem somos só para nós mesmos.
Carrego as Estações Comigo
Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
No bolso esquerdo um riacho murmura.
Ali, onde pequenas pedras se acumulam,
uma canção exala seu vapor,
depois se perde.Jardins de Primavera circulam no meu corpo
Um céu de ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.
Pasto de segredos, mescla de memória
e desejo, meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo)
à procura do sonho de uma nuvem fria.Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda, memória
e desejo, a semear meu corpo.Ali planto meus braços.
Debaixo daquelas flores meus olhos ficam.
Os pés, roídos pela terra, penduro numa árvore.
O tronco multiplico em cem pedaços:
Lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.E pois que carrego as estações comigo
os lábios deixo além, no descampado.
E peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
e o desejo do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.
Em Busca da Beleza
Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria idéia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.
Ser Realista Sem Perder o Ideal
É preciso viver com os pés na terra e a cabeça no céu. Isto é, ser realista sem perder o ideal. Aliás, um ideal – e não um idealismo – é uma meta concreta, possível, onde se pretende chegar. Por isso, a primeira coisa que a pessoa de ideais tem a fazer é conhecer muito bem a sua realidade. Só conhecendo e amando essa realidade, saberá fazê-la crescer e purificá-la do que não é ideal.
(
Padres e pastores são cambistas esperando por fregueses diante dos portões do Céu.
Poeira
Poeira leve, a vibrar as moléculas: poeira
Que um pobre sonhador, à luz da Arte, risonho,
Busca fazer faiscar: pó, que se ergue à carreira
Do Mazepa do Amor pela estepe do Sonho.Para ver-te subir, voar da crosta rasteira
Da terra, a trabalhar, todas as forças ponho:
E a seguir teu destino, enlevada, a alma inteira
O teu ciclo fará, seja suave ou tristonho.Não irás, com certeza, alto ou distante. O insano
Pó não és que, a turvar o céu claro da Itália,
Traz o vento, a bramir, do Deserto africano:Que és o humílimo pó duma estrada sem povo,
Que, pisado uma vez, pelo ambiente se espalha,
Sente um raio de Sol, cai na terra de novo.
Esses que puxam conversa sobre se chove ou não chove – não poderão ir para o Céu! Lá faz sempre bom tempo…
Noite Cruel
A meu irmão Henrique
Morrer… morrer… morrer… Fechar na terra os olhos
A tudo o que se ama, a tudo o que se adora;
E nunca mais ouvir a música sonora
Da ilusão a cantar da vida nos refolhos…Sentir o coração ferir-se nos escolhos
De tormentoso mar, – pobre vaga que chora! –
E no arranco final da derradeira hora,
Soluçando morrer num oceano de abrolhos.Nem ao menos beijar – ó supremo desgosto! –
A mão doce e fiel que nos enxuga o rosto
Mostrando-nos o Céu suspenso de uma Cruz…E perguntar a Deus na agonia e nas trevas:
Onde fica, Senhor, a terra a que nos levas,
Com as mãos postas no seio e os dois olhos sem luz?!
Um Pedaço do Céu
– É verdade, Liliana. De momento, nesta tarde tão húmida e nublada, com este fio que se nos mete pelos ossos adentro, Deus é um café bem quente e aromático, feito com grãos acabados de moer; no verão, procura Deus num belo gelado, num desses gelados tão saborosos, de torrão, de chocolate; ou de papaia e manga, porque agora os espanhóis também já fazem gelados de manga, e de goiaba e papaia, e um dia destes até gelados de dúrio há de haver, embora os espanhóis não gostem do cheiro do dúrio, tão forte, parece que lhes mete nojo. Eu também não gosto do cheiro, mas o fruto é uma delícia. Pensa que aí mesmo, na geladaria da praça, está um pedaço do céu com que sonhámos, ou do céu que podemos alcançar e que ainda não nos tiraram. Senta-te com os teus filhos numa esplanada, num fim de tarde de agosto, come um gelado de manga bem cremoso, e verás que é aí que está o Deus do verão, assim como está no tintico o Deus do inverno. Quando os espanhóis chegaram para nos conquistar, nós sabíamos que não existe um só deus, mas muitos deuses, há um deus para cada coisa,
Não há outro céu além deste amontoar de coisas, e esse céu custa dinheiro, o dinheiro é a chave do céu, e isto causa muita desesperança quando não se tem os euros necessários.
O Mal da Cidade
O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem fibra, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel… A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os Santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro!
Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar –
O Pensador
Não há nenhuma vida verdadeiramente intelectual em que a polémica não seja um acidente, um desnível entre o engenho e a cultura adquirida, por um lado, e, por outro, o meio ambiente; o pensador não é, por estrutura, polemista, embora não fuja ante a polémica, nem a considere inferior; o seu domínio é no campo da paz, não entre os instrumentos de guerra; quando a batalha se oferece sabe, como o filósofo antigo, marchar com a calma e a severa repressão dos instintos que o mundo inteiro, ante a sua profissão, tem o direito de exigir; o seu dever de cidadão impõe-lhe que tome, ao ecoar da voz bárbara, a lança que defende as oliveiras sagradas e os rítmicos templos. A sua linha, porém, o fio de cumeadas por que se alongam os seus passos melhores comportam apenas uma invenção superadora, um perpétuo oferecer aos seus amigos humanos de toda a descoberta possibilidade de um caminho mais belo e mais nobre. Vê-se como um guia e um observador de horizontes que se estendam para além dos limites do mar e dos limites do céu; a sua missão é a de pôr ao alcance de todos os que novamente contemplaram os seus olhos e de os ajudar a percorrer a estrada que abriu ou desvendou;
Estes Homens
estes homens
abrem as portas
do sol nascenteconhecem os íntimos latejos
da cal as soltas águas
os fermentos as uvas
os cílios discretos do pãoamam as urzes e as fontes
o suor dos fenos
a febre moira de um corpo
de mulherestes homens
partem a pedra
com martelos de solidão
(os olhos abismados
nos goivos
da lonjura)erguem as paredes
as janelas crepusculares
as asfaimadas antenas das cidades:
céu de cimento; baba remota
do cansaçoestes homens
tamisam cores: viajam nos navios
pescam no cisco das pérolas
do vidro
são garimpeiros
de uma esponja
de coralmoldam nas forjas
as sílabas secretas
do ferro
afeiçoam os seixos e o linho
o bafo marítimo
das palavrasestes homens
dizem casa com dezembro
nas veias
ternura com a sede de uma seara
grávida
assobiam comovidos contra as sombras
trazem na algibeira
o trevo rugoso das cantigasestes homens:
guardadores de cabras
e de mágoas
de espantos e revoltas
servos emigrantes
contrabandistas
soldados andarilhos do mar
carabineiros da má sorte
trepadores das sete colinas
operários
azeitoneiros
ratinhos
levantam por maio
os cantis do lume: voz de musgo
concha entreaberta
estes homens
(pátria viva;
A mente não deve ser modificada pelo tempo e pelo lugar.
A mente é o seu próprio lugar, e dentro de si
Pode fazer um inferno do céu, do céu um inferno.
Somos o Casamento da Noite com o Sangue
Meu amor, ao fechar esta porta nocturna
peço-te, amor, uma viagem por um escuro recinto:
fecha os teus sonhos, entra com teu céu nos meus olhos,
estende-te no meu sangue como num largo rio.Adeus, adeus, cruel claridade que foi caindo
no saco de cada dia do passado,
adeus a cada raio de relógio ou laranja,
salve, ó sombra, intermitente companheira!Nesta nau ou água ou morte ou nova vida,
uma vez mais unidos, adormecidos, ressuscitados,
somos o casamento da noite com o sangue.Não sei quem vive ou morre, quem repousa ou desperta,
mas é o teu coração que distribui
no meu peito os dons da aurora.
Nasceu um Menino
Nasceu, nasceu um Menino,
Nasceu um Menino mais,
No bercinho pouco fino
Das palhas duns animais!Que num vil curral por quarto
E entre uns pedregulhos nus,
Teve a santa dor do parto
A Mulher que o deu à luz.Mas de cada vez, no mundo,
Que mais um ser aparece,
Quem pode descer ao fundo
Do que o Destino nos tece?À hora em que Este chegava,
Lá para um cerro distante,
Por cada fibra chorava
Una velho cedro gigante.Chorava porque sabia
Que em seu peito condenado
Aquele Menino, um dia,
Seria crucificado.Ora cada vez, no mundo,
Que nasce mais um Menino,
Quem pode descer ao fundo
Do que nos tece o Destino?Já, pelos céus fora, um astro
Descendo sobre o curral,
Abre para sempre um rastro
De alvor sobrenatural.E o velho cedro, que chora
Porque se julga precito,
Pelos séculos em fora
Será sagrado e bendito.Que abertos pelos espaços,
No azul sereno e profundo,