Citação de

O Egoísmo da Espécie

Os amantes querem pertencer um ao outro, e para toda a eternidade. Exprimem-se de maneira assaz curiosa quando se abraçam num instante de profunda intimidade para gozarem assim do máximo prazer e da mais alta felicidade que o amor lhes pode dar. Mas o prazer é egoísta. Não há dúvida que do prazer dos amantes não se pode dizer que seja egoísta, porque é recíproco; mas o prazer que ambos sentem na união é absolutamente egoísta, se for verdade que nesse abraço já se confundem num só e mesmo ser. Mas estão enganados; porque, no mesmo instante, a espécie triunfa sobre os indivíduos; domina-os, rebaixa-os, ao seu serviço.

Julgo isto muito mais ridículo do que a situação considerada cómica por Aristófanes. Porque o cómico desta bipartição reside em ser contraditória, o que Aristófanes não salientou suficientemente. Quem vê um homem, crê ver um ser inteiro e independente, um indivíduo, o que toda a gente admite até que observe que, apoderado pelo amor, ele não passa de uma metade que corre à procura da outra metade.
Nada há que seja cómico na metade de uma maçã; cómico seria tomar por maçã inteira a metade de uma maçã; não há contradição no primeiro caso, há apenas no segundo. Se tomarmos a sério o dito de que a mulher é a metade do ser humano, a mulher não nos parecerá cómica na estranha situação do amor. O homem, pelo contrário, que goza de consideração social porque é um ser completo, torna-se cómico quando de repente se deita a correr em busca da mulher e prova assim que não deixara de ser apenas metade do ser humano. Quanto mais reflectimos tanto mais nos parecerá divertida a situação; porque se o homem é realmente um todo, na situação de amante deixa de o ser, ou então forma com a mulher muito mais do que uma unidade. Não estranhemos pois que os deuses se divirtam, e que principalmente se divirtam à custa do homem. Quando os amantes, como dois pombinhos, voam pelos céus em núpcias deliciosas, podemos acreditar que eles querem unir-se, ser uma só unidade, já que dizem querer viver um para o outro pelos tempos sem fim. Mas – é curioso -, em lugar de viverem um para o outro, vivem, sem que disso suspeitem, apenas para a espécie.