Fatos empíricos:
Um: Todos nós somos capazes de sentir amor por outros seres humanos.
Dois: Impomos limitações a esse amor.
Três: Podemos transcender a todas essas limitações – se nos aprouver. (É uma questão de observação que, quem quer que o deseje, poderá vencer a repugnância pessoal, o sentimento de classe, o ódio nacional, o preconceito de cor. Não é coisa fácil; mas podemos conseguir, se tivermos vontade e soubermos pôr em prática as nossas boas intenções.)
Quatro: Amor que se manifesta em bom tratamento cria amor. Ódio que se manifesta em mau tratamento cria ódio.
À luz desses fatos é óbvio quais deveriam ser os comportamentos políticos entre pessoas, entre classes, entre nações. Mas, ainda uma vez, o saber não basta. Saber, todos nós sabemos; onde quase todos nós fracassamos é em fazer. E a questão está, habitualmente, em achar os melhores métodos de dar cumprimento às intenções. Entre outras coisas, a propaganda da paz deve consistir numa série de instruções para a arte de modificar o caráter.
Passagens sobre Dois
1685 resultadosDuvida de tudo pelo menos uma vez, mesmo que seja da sentença: duas vezes dois são quatro.
Os Sentimentos não Evoluem
Sei que tenho conhecimentos que os antigos não possuíam. Somos melhores filósofos sob muitos aspectos; mas no que diz respeito aos sentimentos, confesso que não conheço nenhum povo antigo que nos seja inferior. É desse lado, creio, que se pode mesmo dizer que é difícil para os homens elevarem-se acima do instinto da natureza. Ela fez as nossas almas tão grandes quanto elas se podem tornar, e a elevação que elas encontram na reflexão é em geral tanto mais falsa quanto mais guindada. Tudo aquilo que só depende da alma não recebe nenhum acréscimo pelas luzes do espírito e, porque o gosto se prende a ela, vejo que em vão se aperfeiçoam os nossos conhecimentos: instrui-se o nosso juízo, não se eleva o nosso gosto.
Represente-se Pourceaugnac no Teatro da Comédia, ou outra farsa com alguma comicidade, ela não atrairá público menor do que Andrómaca: as gargalhadas da platéia encantada serão ouvidas até na rua. Apresentem-se pantominas suportáveis na Feira, elas deixarão deserto o Teatro de Comédia; vi os nossos almofadinhas e os nossos filósofos subirem nos bancos para verem espancar dois garotos. Não se perde um gesto de Arlequim, e Pierrot faz rir este século sábio que se pavaneia de tanta polidez.
O perdão cai como uma chuva suave do céu na terra. É duas vezes bendito: bendito ao que dá e bendito ao que recebe.
Lembrai-vos que em toda festa, tendes dois convivas a entreter – o corpo e a alma; e o que dais ao corpo, na realidade o perdeis. Mas o que dais à alma, permanece para sempre.
Quem compra barato, compra duas vezes.
Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois são cinco.
Inteligência e Intuição
O instinto é simpatia. Se esta simpatia pudesse alargar o seu objecto e também reflectir sobre si mesma, dar-nos-ia a chave das operações vitais – do mesmo modo que a inteligência, desenvolvida e reeducada, nos introduz na matéria. Porque, não é de mais repeti-lo, a inteligência e o instinto estão orientados em dois sentidos opostos: aquela para a matéria inerte, este para a vida. A inteligência, por meio da ciência, que é obra sua, desvendar-nos-á cada vez mais completamente o segredo das operações físicas; da vida apenas nos dá, e não pretende aliás dar-nos outra coisa, uma tradução em termos de inércia. Gira em derredor, obtendo de fora o maior número de visões do objecto que chama até si, em vez de entrar nele. Mas é ao interior mesmo da vida que nos conduzirá a intuição, quero dizer o instinto tornado desinteressado, consciente de si mesmo, capaz de reflectir sobre o seu objecto e de o alargar indefinidamente.
Que um esforço deste género não é impossível, é o que demonstra já a existência no homem de uma faculdade estética ao lado da percepção normal. O nosso olhar apercebe os traços do ser vivo, mas justapostos uns aos outros, e não organizados entre si.
Soneto de Natal
«E o terceiro Anjo derramou a sua taça nos rios
e nas fontes, ficando a água da cor do sangue.»
Apocalipse, 16:4Não anuncio a paz, mas sim a guerra.
Um. Anjo vingador comigo vem.
Há dois milénios que percorro a Terra
repetindo a mensagem de Belém.O coração humano endureceu
à força de sentir a Fé perdida.
E o espírito do Bem? Ensurdeceu
no furacão das ambições da vida.Por isso trago um Anjo vingador
para ferir de morte a semelhança
do lobo disfarçado de cordeiro:— Que se cuide quem não sentir Amor
pois matará em si essa criança
inocente que um dia foi primeiro.
Mais do que Amor
O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar… o quê? — perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia.
Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos e profundos vivia com serenidade durante largo tempo, compreendendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se distanciado dos homens. Apesar de que nesse período conseguia estender-lhes a mão com uma fraternidade de que eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das próprias dores e ela, embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um olhar bom — brilhante e misterioso como o de uma mulher grávida.
Do Tempo ao Coração
E volto a murmurar Do cântico de amor
gerado na Suméria às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais purasDe uma genebra a mais num bar de Amsterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas tantas mãos que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecemDe ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aquiao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos deleDa pertinaz presença E da longevidade
do corvo do chacal do louco do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minutoDo que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo ao coração minado pelo cancro
Dos rins ao infinito incubado na cóleraDo tempo ao coração mas com pausa na pele
como «Roma by night» entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não que já não somos doisDos rins ao infinito A este que não outro
Ao que rola dos rins Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tardeDa curva de entretanto à entrada do poço
De soletrar em mim a ler nas tuas mãos
como é rápido e lento e recto e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
Um homem só aprende de duas maneiras, uma através da leitura, e outra pela associação com pessoas mais inteligentes.
Há duas forças que unem os homens: medo e interesse.
Há duas coisas que ninguém perdoa: nossas vitórias e nossos fracassos.
Homem que se furta um ou dois meses à canseira dos livros, para amaciar a aridez do espírito nas frivolidades da vida – embora se preocupe imaginando belezas no amor, única frivolidade suportável – tal homem o que faz é enojar-se um ou dois meses para depois entrar na vida que deixou, abraçar a ciência, esposa legítima que desdenhara, e recordar com tédio as vulgaridades em que se amesquinhou. Este homem não serve para mulher nenhuma. E nenhuma mulher serve para este homem.
Vi Jesus Cristo Descer à Terra
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
O homem nem sequer é superior ao seu venerável pai – o macaco: excepto em duas coisas tenebrosas – o sofrimento moral e o sofrimento social.
Saber Pegar na Asa Certa
Qualquer coisa tem duas asas: uma que nos permite a levemos connosco, a outra que tal intenção não nos facilita. Se o teu irmão tem mau feitio, não o chames a ti levando a mão à asa que se manifesta de modo errado. Por aí, é-te impossível levar a bom termo o teu propósito. Toma-o antes pela asa boa, pela mão que se não recusa à tua mão – e se te lembrares que ele é teu irmão, que foi amamentado contigo, logo verás que o podes chamar a ti.
Mas o homem que enxerga dois séculos na frente de seu tempo morre na forca…
A uma Dama com quem Andava de Amores
Jogando com Paulinha o toque-emboque,
Porque me punha em ré, usou de treta;
Um cabe me armou, coube a palheta,
Morre ela que de ilharga só lhe toque.Eu disse: «– Cabe peço, toque-emboque.»
Mas antes que co’ as bocas arremeta,
Por me falar à mão, diz: «– Não se meta,
Por culos, dois da minha que se emboque.»Endireito a palheta em tão boa hora,
Sem buscar tijolinho, e segurei-me,
Dando-lhe ora por dentro, ora por fora.Virou-se para mim, eu alegrei-me
Dizendo-lhe: «– Essa volta me namora.»
Toquei-lhe as bocas do aro e emboquei-me.