Citação de

Glosa a mote alheio

“Vejo-a na alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que nĂŁo vejo.”

Se sĂł no ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tĂŁo excelente
Mal poderei ser ausente,
Enquanto o nĂŁo for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tĂŁo bem debuxada
E a memĂłria tanto voa,
Que, se a nĂŁo vejo em pessoa,
“Vejo-a na alma pintada.”

O desejo, que se estende
Ao que menos se concede,
Sobre vĂłs pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, que em ausĂȘncia vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tĂŁo pobre estar,
Que entĂŁo nĂŁo tenho que dar,
“Quando me pede o desejo.”

Como Ă quele que cegou
É cousa vista e notória,
Que a Natureza ordenou
Que se lhe dobre em memĂłria
O que em vista lhe faltou,
Assim a mim, que nĂŁo rejo
Os olhos ao que desejo,
Na memĂłria e na firmeza
Me concede a Natureza
“O natural que nĂŁo vejo.”