Passagens de Joel Neto

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Frases, pensamentos e outras passagens de Joel Neto para ler e compartilhar. Os melhores escritores estão em Poetris.

Para uma certa categoria de pobres diabos, já se sabe, a arrogância revela-se muitas vezes uma ferramenta de enorme utilidade. Em Lisboa, pelo menos, é assim: uma pessoa pode ser modesta, ignorante e frágil, mas se puser um ar de superioridade ganha logo ascendente na relação com a pessoa em frente.

Maravilhava-me, mais do que o belo em si, o que as pessoas tinham por belo. O seu belo. As suas coisas. As suas coisinhas. As que encaixavam com demasiada perfeição na decoração geral, tudo combinado, equilibrado, concluído – e mais ainda as que não encaixavam em nada, em que ela insistia apesar dos protestos do marido, em que ele fazia finca-pé apesar do desdém da mulher, de que nenhum dos dois gostava mas também não tinha coragem para deitar fora.

As coisas voltaram a correr-lhe bem, e o que o proporcionara fora o mais velho dos grandes adventos da vida: a descoberta de um amigo.

Reinventar o Mistério

Cada vez acredito mais nisso: pode efectivamente haver bom sexo sem pecado. Mas não pode, nunca pôde, nem nunca poderá haver bom sexo sem mistério. Se muitos casais perdem o desejo ao fim de alguns anos, é porque o mistério desapareceu. Se outros tantos o mantêm latejante ao fim de várias décadas, é porque encontraram uma forma de reinventar o mistério. Feitas as contas, tem de haver sempre alguma espontaneidade – até alguma pressa, alguma urgência. E o melhor, apesar de tudo, é que o sexo seja muitas vezes bom e todas as restantes apenas assim-assim. No exacto instante em que for perfeito perderá dois terços do interesse, se não o interesse todo. Da próxima já não poderá ser melhor.

É claro: quatro quintos dos portugueses discordarão aberta e ostensivamente disto. Nos estudos sociológicos e nas conversas de café, nas telenovelas e nas reportagens «do social», não encontro outra coisa senão atletas sexuais – e nenhum atleta sexual alguma vez poderá ser surpreendido a aceitar que a sua última sessão foi apenas assim-assim (e muito menos que a próxima poderá ser assim-assim também).

O defeito é uma porta que uma mulher nos abre no coração. É o defeito que a transforma na vizinha do lado, na rapariga que cobiçámos no liceu, na mulher com quem casámos e que carregou o nosso filho no ventre.

Não tinha exactamente saudades deles: tinha talvez saudades do que eu próprio era na presença deles, desse miúdo rebelde e terno que o tempo e a América e a morte e a perda da inocência e o tédio, no seu sempre infernal encolher de ombros, se haviam encarregado de adestrar.

Quando finalmente acabou de chorar, notou que as lágrimas haviam formado à sua volta uma bonita e triste lagoa. E, ao dar-se conta de que era funda o bastante para um homem se afogar, deixou-se afundar nela.

Eu presto mais respeito a quem escreve um livro, qualquer que ele seja, do que a quem de repente se julga importante por não fazer absolutamente nada.

A condescendência, com o que tinha de indiferença e de mentira, era a grande inimiga da intimidade. A verdade podia fazer muita mossa. Estava longe de ser um valor absoluto. Mas, se ruía a intimidade, restava o quê? Sustinha-se de pé o quê? Sustinha-nos de pé o quê?

Uma mulher sexy será sempre uma mulher sexy, mesmo que vestida de esquimó – e uma mulher a fingir que é sexy será sempre uma mulher a fingir que é sexy, mesmo que (ou sobretudo se) vestida com sapatos altos, meias de renda e mais nada.

Dizia D. H. Lawrence que a pornografia é “a tentativa de insultar o sexo” – e eu não estou de acordo. A pornografia é, antes, a aceitação da desesperança sem cair no desespero, atitude que sobre todas as outras me parece adequada aos tempos.

A culpa é uma coisa extraordinária. No limite, até somos capazes de confundi-la com amor.

Quando um homem decide fazer de uma determinada coisa a sua vida toda, ou se empenha em alargar os limites dessa coisa, ou essa coisa é apenas a lama que o engolirá.

A culpa pode ser a pior conselheira. (…) A culpa tolda até as imagens mais nítidas.

Se muitos casais perdem o desejo ao fim de alguns anos, é porque o mistério desapareceu. Se outros tantos o mantêm latejante ao fim de várias décadas, é porque encontraram uma forma de reinventar o mistério. Feitas as contas, tem de haver sempre alguma espontaneidade – até alguma pressa, alguma urgência.

A Sopa Azeda

A dita sopa azeda não se parecia com nada do que tivesse provado até àquele momento. Num ápice, desfilaram vários sabores vindos como que do próprio interior do tempo. E, quando ele se pôs a percorrê-los, sentiu que se sentavam em volta os seus antepassados, os pais e os avós e os avós destes, e os velhos da Terra Chã e da Terceira, e os açorianos dali até ao povoamento, e deste até ao próprio Génesis, quando na manhã do Sexto Dia o Senhor olhou sobre a sua obra e decidiu que estava, afinal, incompleta.

Se há uma coisa comum a qualquer ser humano, é o impulso de sobrepor-se ao ser humano em frente, quer seja pondo-lhe o pé no pescoço, quer seja passando-lhe a mão na cabeça.

Filhos de pais cuja memória alcança para além do dia do primeiro parto resultam sempre em adultos mais saudáveis, desempoeirados e independentes.