Longos

2409 resultados
Longos para ler e compartilhar. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Fado Português

O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro velero
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Somos aquilo que Pensamos

Os nossos pensamentos determinam aquilo que somos. A nossa atitude mental é o factor X que determina o nosso destino. Emerson disse: «Um homem é aquilo em que pensa o dia inteiro». Como poderia ser outra coisa qualquer? Estou convencido, sem qualquer sombra de dúvida, que o maior problema que temos de enfrentar – na realidade, trata-se praticamente do único problema que temos de enfrentar – é a escolha dos pensamentos certos. Se conseguirmos, estaremos no caminho certo para resolver todos os nossos problemas. Marco Aurélio, o grande filósofo que governou o Império Romano, resumiu esta questão em onze palavras — onze palavras que podem determinar o seu destino: «A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fazem dela».

É verdade, se pensarmos em coisas felizes, seremos felizes. Se pensarmos em desgraças, seremos uns desgraçados. Se pensarmos em coisas assustadoras, viveremos com medo. Se pensarmos em doenças, ficaremos provavelmente doentes. Se pensarmos em falhar, é certo que falhamos. Se ficarmos mergulhados em autocomiseração, vão todos afastar-se de nós e evitar-nos. Norman Vincent Peale afirmou: «Tu não és o que pensas que és; tu és o que tu pensas».

Estarei eu a defender uma típica atitude de Pollyanna (clássico de Eleane H.

Continue lendo…

A Vantagem da Frivolidade

O respeito que a tragédia inspira é muito mais perigoso do que a despreocupação de um chilrear de criança. Qual é a eterna condição das tragédias? A existência de ideias, cujo valor é considerado mais alto do que o da vida humana. E qual é a condição das guerras? A mesma coisa. Obrigam-te a morreres porque existe, dizem, alguma coisa que é superior à tua vida. A guerra só pode existir no mundo da tragédia; desde o começo da sua história, o homem apenas conheceu o mundo trágico e não é capaz de sair dele. A idade da tragédia só pode ser encerrada por uma revolta da frivolidade. As pessoas já só conhecem da Nona de Beethoven os quatro compassos do hino à alegria que acompanham a publicidade dos perfumes Bella. Isso não me escandaliza. A tragédia será banida do mundo como uma velha cabotina que, com a mão no peito, declama em voz áspera. A frivolidade é uma cura de emagrecimento radical. As coisas perderão noventa por cento do seu sentido e tornar-se-ão leves. Nessa atmosfera rarefeita, desaparecerá o fanatismo. A guerra passará a ser impossível.

Perdoar e Esquecer

Perdoar e esquecer equivale a jogar pela janela experiências adquiridas com muito custo. Se uma pessoa com quem temos ligação ou convívio nos faz algo de desagradável ou irritante, temos apenas de nos perguntar se ela nos é ou não valiosa o suficiente para aceitarmos que repita segunda vez e com frequência semelhante tratamento, e até de maneira mais grave. Em caso afirmativo, não há muito a dizer, porque falar ajuda pouco. Temos, portanto, de deixar passar essa ofensa, com ou sem reprimenda; todavia, devemos saber que agindo assim estaremos a expor-nos à sua repetição. Em caso negativo, temos de romper de modo imediato e definitivo com o valioso amigo ou, se for um servente, dispensá-lo. Pois, quando a situação se repetir, será inevitável que ele faça exactamente a mesma coisa, ou algo inteiramente análogo, apesar de, nesse momento, nos assegurar o contrário de modo profundo e sincero. Pode-se esquecer tudo, tudo, menos a si mesmo, menos o próprio ser, pois o carácter é absolutamente incorrigível e todas as acções humanas brotam de um princípio íntimo, em virtude do qual, o homem, em circunstâncias iguais, tem sempre de fazer o mesmo, e não o que é diferente. (…) Por conseguinte,

Continue lendo…

A Convicção é Sempre Cega

O intelecto humano, quando assente numa convicção (ou por já bem aceite e acreditada porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou por sua vez:«E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto, pereceram?» Essa é a base de praticamente toda a superstição, trate-se de astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens, com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre; quando falha – o que é bem mais frequente – negligenciam-nos e passam adiante.
Esse mal insinua-se de maneira muito mais subtil na filosofia e nas ciências. Nestas, o de início aceite tudo impregna e reduz o que se segue, até quando parece mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa complacência e falta de fundamento a que nos referimos,

Continue lendo…

Porque o Melhor, Enfim

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!

_ Sorrindo interiormente,
Co’as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. _

Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano…
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.

Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope…
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas…

Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos,

Continue lendo…

Em Portugal, Ter Amor às Nossas Coisas Implica Dizer Mal Delas

Em Portugal, ter amor às nossas coisas implica dizer mal delas, já que a maior parte delas não anda bem. Nem uma coisa nem outra constitui novidade. Nem dizer mal delas, nem o facto de elas não andarem bem. Será que se diz mal na esperança de que elas se ponham boas? Também não. As nossas causas são quase sempre perdidas. Porquê então?

Porque o nosso maior bem, como António Vieira contradizia, é nunca estarmos satisfeitos. Nas nossas cabeças perversas e almas amarguradas, onde se acham todas as coisas portuguesas tal e qual achamos que deviam ser, Portugal é o país mais perfeito do mundo. Já isso é uma espécie de país, melhor do que os países reais onde as pessoas estão realmente convencidas que as coisas correm muito bem. Aprendemos a viver com esse país. E alguns conseguiram mesmo viver nele.

Desdenhar o que se tem e elogiar o que têm os outros, mas sem querer trocar, é a principal característica do aristocrático feitio do povo português. Às vezes penso que dizemos tanto mal de Portugal e dos portugueses para que não sejam os estrangeiros a fazê-lo. Monopolizamos a maledicência para nos defendermos; para evitar a concorrência.

Continue lendo…

A Razão

A razão é a suprema união da consciência e da consciência de si, ou seja, do conhecimento de um objecto e do conhecimento de si. É a certeza de que as suas determinações não são menos objectais, não são menos determinações da essência das coisas do que são os nossos próprios pensamentos. É, num único e mesmo pensamento, ao mesmo tempo e ao mesmo título, certeza de si, isto é, subjectividade, e ser, isto é, objectividade.
(…) A razão é tão poderosa quanto ardilosa. O seu ardil consiste em geral nessa actividade mediadora que, deixando os objectos agirem uns sobre os outros conforme à sua própria natureza, sem se imiscuir directamente na sua acção recíproca, consegue, contudo, atingir unicamente o objectivo a que se propõe.
(…) A Razão governa o mundo e, consequentemente, governa e governou a história universal. Em relação a essa razão universal e substancial, todo o resto é subordinado e serve-lhe de instrumento e de meio. Ademais, essa Razão é imanente na realidade histórica, realiza-se nela e por ela. É a união do Universal existente em si e por si e do individual e do subjecitvo que constitui a única verdade.

A Alegria Pura só Existe sem a Vaidade

A mais pura alegria é aquela que gozamos no tempo da inocência; estado venturoso, em que nada distinguimos pela razão, mas pelo instinto; e em que nada considera a razão, mas sim a natureza. Então circula veloz o nosso sangue, e os humores que num mundo novo, e resumido, apenas têm tomado os seus primeiros movimentos. Os humores são os que produzem as nossas alegrias; e com efeito não há alegria sem grande movimento; por isso vemos, que a tristeza nos abate, e a alegria nos move; o sossego ainda que indique contentamento, contudo mais é representação da morte que da vida; e a tranquilidade pode dar descanso, porém alegria não a dá sempre.

Mas como pode deixar de ser pura a alegria dos primeiros anos, se ainda então a vaidade não domina em nós? Então só sentimos o bem, e o mal, que resulta da dor, ou do prazer; depois também sentimos o mal, e o bem da opinião, isto é, da vaidade; por isso muitas cousas nos alegram, que tomadas em si mesmas, não têm mais bem, que aquele com que a vaidade as considera; e outras também nos entristecem, que tomadas só por si, não têm outro mal,

Continue lendo…

Alma Humana, Formada de Coisa Nenhuma

Anjo:

Alma humana, formada
de nenhüa cousa, feita
mui preciosa,
de corrupção separada,
e esmaltada
naquela frágoa perfeita,
gloriosa;
planta neste vale posta
pera dar celestes flores
olorosas,
e pera serdes tresposta
em a alta costa
onde se criam primores
mais que rosas;

planta sois e caminheira,
que ainda que estais, vos is
donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
é ser herdeira
da glória que conseguis:
andai prestes.
Alma bem-aventurada,
dos anjos tanto querida,
não durmais;
um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.

(…)

Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela [Alma], e diz o Diabo:

Tão depressa, ó delicada,
alva pomba, pera onde is?
Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
por estrada,
que somente não sentis
se sois humana?
Não cureis de vos matar,
que ainda estais em idade
de crecer.
Tempo há i pera folgar
e caminhar…
Vivei à vossa vontade,

Continue lendo…

A Mentira é a Base da Civilização Moderna

É na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc… A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita. A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc. …
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António,

Continue lendo…

A Idade da Derrota Aceite

Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.
A minha margem de hesitação já não se alonga em anos,

Continue lendo…

O Perigo nas Relações Humanas

Nas relações humanas o perigo é coisa de todos os dias. Deves precaver-te bem contra este perigo, deves estar sempre de olhos bem abertos: não há nenhum outro tão frequente, tão constante, tão enganador! A tempestade ameaça antes de rebentar, os edifícios estalam antes de cair por terra, o fumo anuncia o incêndio próximo: o mal causado pelo homem é súbito e disfarça-se com tanto mais cuidado quanto mais próximo está. Fazes mal em confiar na aparência das pessoas que se te dirigem: têm rosto humano, mas instintos de feras. Só que nestas apenas o ataque directo é perigoso; se nos passam adiante não voltam atrás à nossa procura. Aliás, somente a necessidade as instiga a fazer mal; a fome ou o medo é que as forçam a lutar. O homem, esse, destrói o seu semelhante por prazer. Tu, contudo, pensando embora nos perigos que te podem vir do homem, pensa também nos teus deveres enquanto homem. Evita, por um lado, que te façam mal, evita, por outro, que faças tu mal a alguém. Alegra-te com a satisfação dos outros, comove-te com os seus dissabores, nunca te esqueças dos serviços que deves prestar, nem dos perigos a evitar. Que ganharás tu vivendo segundo esta norma?

Continue lendo…

O Engraxanço e o Culambismo Português

Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores,os jornalistas engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc… Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.

Continue lendo…

Beijo

Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente…
Vá!

Guardo segredo,
Não tenha medo…
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê!

*

Como ele é doce!
Como ele trouxe,
Flor,
Paz a meu seio!
Saciar-me veio,
Amor!

Saciar-me? louco…
Um é tão pouco,
Flor!
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
Amor!

Talvez te leve
O vento em breve,
Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
Amor!

Guardo segredo,
Não tenhas medo
Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
Dois…

*

Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas…
Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Três!

Continue lendo…

Nada Pode Haver de mais Belo

Amigo Bernardo, dos desertos do Roncão d’el-Rei, na mais bela poética noite de luar que ver se possa, te escreve este teu amigo. Nada pode haver de mais belo; os rouxinóis cantam à desgarrada, o ar rescende dos milhares de loendros (laurier-rose) que cobrem as encostas alcantiladas do Guadiana. Que maravilha, que encanto, que tristeza (tu, com certeza, aqui choravas)! Neste momento, houve-se o sinistro roncar da coruja e o longínquo uivar dos lobos, misturado com o forte ladrar dos rafeiros e os nossos cavalos relincham inquietos nas quadras… É à luz dum prosaico castiçal (uma garrafa com uma vela) que te escrevo estas sentidas regras, que espraio sobre este branco papel as ondas da minha melancolia. E como não estar melancólico se acabamos de fazer dezasseis léguas a cavalo em oito horas e não descansámos e não dormimos a noite passada senão uma mísera hora e vemos apenas diante de nós umas velhas esteiras, as nossas mantas, e os aparelhos dos nossos cavalos como travesseiros, para passarmos umas noites.

Cântico ao Amor

Somos na obra do Mundo
um corpo em carne e desejo
que alimenta de alquimia
o tumulto do vento
que o tempo do teu corpo espalha
ao passar.

És mar,
és rainha
és o sol da tarde confidente
és acácia perfumada
companheira coroada
voz de inquietação
és insónia de seda
nas paredes do meu corpo.
Sulcas a lembrança
batalhas a meu lado
vives comigo às escondidas
mesmo no dia
do meu suicídio.

Recordas-me a tarde
nos Champs Elysées
mas também em Roma, Veneza ou Madrid
minha companheira coroada
minha acácia perfumada
trazes a tarde incendiada trazes
a tarde no teu olhar
lembras a praia
onde nas ondas mergulhámos,
vem contigo a madrugada
beijada de carícias,
meus olhos não se cansam
são fruto do teu reino
oh sempre bela
oh sempre rainha,
tua palavra determinante
tuas mãos determinadas
tua alma vibrante
tua boca de eternidade
minha acácia perfumada
minha coluna rainha
falas comigo baixinho
dás-me tua vontade em surdina.

Continue lendo…

Para o Jornalista, Tudo o que é Provável é Verdade

«Para o jornalista, tudo o que é provável é verdade». Trata-se dum axioma estupendo, como tudo o que Balzac inventa. Reflectindo nele, nós percebemos quantas falsidades se explicam e quantas arranhadelas na sensibilidade se resumem a fanfarronices e não a conhecimento dos factos. Em geral, o pequeno jornalista é um profeta da Imprensa no que toca a banalidades, e um imprudente no que se refere a coisas sérias. Quando Balzac refere que a crítica só serve para fazer viver o crítico, isto estende-se a muitas outras tendências do jornalista: o folhetinista, que é o que Camilo fazia nas gazetas do Porto (…). Eu própria não estou isenta duma soma de articulismos, de recursos à blague, de graças adaptáveis, de frequentação do lado mau da imaginação, de ridículos, de fastidiosos conselhos, de discursos convencionais, de condenações fáceis, de birras imbecis, de poesia de barbeiro, de elegâncias chatas, de canibalismo vulgar, de panfletismo «bom cidadão». Quando não sou nada disso, sou assunto para jornais, mas não sou jornalista.

Amor o Quis assim

Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.

Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.

Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.

Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.

Continue lendo…

O Divino

Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conhecemos.

Glória aos incógnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhes iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer naqueles!

Pois insensível
É a natureza:
O sol ‘spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A lua e as ‘strelas.

Vento e torrentes,
Trovão e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um após outro.

Tal a sorte às cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.

Por eternas leis,
Grandes e de bronze,
Temos todos nós
De fechar os círculos
Da nossa existência.

Mas somente o homem
Pode o impossível:
Só ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.

Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,

Continue lendo…