Não!
Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio:
Mas ouve-me, receio
Tomar-te desgraçada:
O homem, minha amada,
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa…
Sim, a mulher é flor!Ora e a flor, vê tu
No que ela se resume…
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essência dela,
A mais viçosa e bela
Vê-a a gente e… basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás quanto possuo!Terás, enquanto a mim
Me alumiar teu rosto,
Uma alma toda gosto,
Enlevo, riso, encanto!
Depois terás meu pranto
Nas praias solitárias…
Ondas tumultuárias
De lágrimas sem fim!À noite, que o pesar
Me arrebatar de cada,
Irei na campa rasa
Que resguardar teus ossos,
Ah! recordando os nossos
Tão venturosos dias,
Fazer-te as cinzas frias
Ainda palpitar!Mil beijos, doce bem,
Darei no pó sagrado,
Em que se houver tornado
Teu corpo tão galante!
Com pena, minha amante,
De não ter a morte
Caído a mim em sorte…
Caído em mim também!
Passagens sobre Lua
378 resultadosSe Me Esqueceres
Quero que saibas
uma coisa.Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
És Linda
És linda. E nem sabes quantos pedaços de beleza tive de juntar para chegar a esta conclusão. Para te construir, tive de misturar a conspiração das searas com a tristeza do choupo, a inquietação da cotovia com o cheiro lavado do vento do ocidente. E a firmeza repartida dos livros, com a alegria explosiva dos miosótis e a luz escura das violetas. Juntei depois um pouco de ansiedade das estrelas, a paciência das casas à beira da falésia, a espuma da terra, o respirar do sul, as perguntas de gesso que se fazem à lua. Acrescentei-lhe a canção das margens e pequenos pedaços da angústia do olhar. Não esqueci a intimidade do frio nem a dor branca que habita o coração dos muros. Por fim, deitei na tua pele o sono dos alperces, aos teus músculos prometi a violência das cascatas, no teu sexo acordei a memória do universo.
A tua beleza está no meu desejo, nos meus olhos, na minha desigual maneira de te amar. És linda, repito. Mas tenta não encarar o que te digo como um elogio.
O Amor entre o Trigo
Cheguei ao acampamento dos Hernández antes do meio-dia, fresco e alegre. A minha cavalgada solitária pelos caminhos desertos, o repouso do sono, tudo isso refulgia na minha taciturna juventude.
A debulha do trigo, da aveia, da cevada, fazia-se ainda com éguas. Nada no mundo é mais alegre que ver rodopiar as éguas, trotando à volta do calcadouro do cereal, sob o grito espicaçante dos cavaleiros. Brilhava um sol esplêndido e o ar era um diamante silvestre que fazia brilhar as montanhas. A debulha é uma festa de ouro. A palha amarela acumula-se em montanhas douradas. Tudo é actividade e bulício, sacos que correm e se enchem, mulheres que cozinham, cavalos que tomam o freio nos dentes, cães que ladram, crianças que a cada momento é preciso livrar, como se fossem frutos da palha, das patas dos cavalos.Oe Hernández eram uma tribo singular. Os homens, despenteados e por barbear, em mangas de camisa e com revólver à cinta, andavam quase sempre besuntados de óleo, de poeiras, de lama, ou molhados até aos ossos pela chuva. Pais, filhos, sobrinhos, primos, eram todos da mesma catadura. Estavam horas inteiras ocupados debaixo de um motor, em cima de um tecto,
O Amor Limitado
Algum homem indigno de ser possuidor
De amor velho ou novo, sendo ele próprio falso ou fraco,
Pensou que a sua dor e vergonha seriam menores
Se a sua ira sobre as mulheres descarregasse.
E então uma lei nasceu:
Que cada uma um só homem conhecesse.
Mas são assim as outras criaturas?São o sol, a lua, as estrelas proibidos por lei
De sorrir para onde lhes apetece, ou de esbanjar a sua luz?
Divorciam-se os pássaros, ou são censurados
Se abandonam o seu par, ou dormem fora uma noite?
Os animais não perdem as suas pensões
Ainda que escolham novos amantes,
Mas nós fizémo-nos piores do que eles.Quem já armou belos navios para ancorar nos portos,
Em vez de buscar novas terras, ou negociar com todos?
Ou construiu belas casas, plantou árvores e arbustos,
Apenas para as trancar, ou então deixá-los cair?
O Bom não é bom, a não ser
Que mil coisas possua,
Mas arruína-se com a avidez.Tradução de Helena Barbas
Alegria da criação
Plantei a semente da palavra
Antes da cheia matar o meu gado
Ensinei ao meu filho a lavra e a colheita
num terreno ao lado
a palavra rompeu
Cresceu como a baleia
no silêncio da noite à lua cheia
Vi mudar estações
Soprar a ventania
Brilhar de novo o sol
sobre a baía
Fui um bom engenheiro
Um bom castor
Amei a minha amada
Com amor
De nada me arrependo
Só a vida
me ensinou a cantar
esta cantiga
A Uma Senhora Que Me Pediu Versos
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das alma já ressequidas.Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.
A Vida
Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d’Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n’um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!Ó Quarta-feira de Trevas!
Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas…
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d’Agosto!
Luas d’Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras,
Campesinas VIII
Orgulho das raparigas,
Encanto ideal dos rapazes,
Acendes crenças vivazes
Com tuas belas cantigas.No louro ondear das espigas,
Boca cheirosa a lilazes,
Carne em polpa de ananases
Lembras baladas antigas.Tens uns tons enevoados
De castelos apagados
Nas eras medievais.Falta-te o pajem na ameia
Dedilhando, a lua cheia,
O bandolim dos seus ais!
Opiário
Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Sim: Existo Dentro do Meu Corpo
Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar a terra por causa do estômago.
Indiferente?
Não: natural da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!
Mas, que luz é essa que ali aparece, naquela janela? A janela é o oriente, e Julieta o sol. Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida lua.
Como Podemos Esperar
Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aquicomo podemos esperar uma noite de lua e vento?
Aquella Orgia
Nós eramos uns dez ou onze convidados,
– Todos buscando o gozo e achando o abatimento,
E todos afinal vencidos e quebrados
No combate da Vida inutil e incruento.Tocava o termo a ceia – e ia surgindo o alvor
Da madrugada vaga, etherea e crystallina,
A alguns trazendo a vida, e enchendo outros de horor,
Branca como uma flor de prata florentina.Todos riam sem causa. – A estolida batalha
Da Materia e da Luz travara-se afinal,
E eram já côr de vinho os risos e a toalha,
– E arrojavam-se ao ar os copos de crystal.Crusavam-se no ar ditos como facadas;
Escandalos de amor, historias sensuaes…
– Rolavam nos divans caindo, ás gargalhadas,
Sujos como truões, torpes como animaes.Um agitando o ar com risos desmanchados,
Recitava canções, farças, Hamlet e Ophelia;
– Outro perdido o olhar, e os braços encruzados,
De bruços, n’um divan, roia uma camelia!Outros fingindo a dôr, fallavam dos ausentes,
Das amantes, dos paes, com gritos d’afflicção,
– Um brandia um punhal, com ditos incoherentes;
Os Comunistas
… Passaram bastantes anos desde que ingressei no Partido… Estou contente… Os comunistas constituem uma boa família… Têm a pele curtida e o coração valoroso… Por todo o lado recebem pauladas… Pauladas exclusivamente para eles… Vivam os espiritistas, os monárquicos, os aberrantes, os criminosos de vários graus… Viva a filosofia com fumo mas sem esqueletos… Viva o cão que ladra e que morde, vivam os astrólogos libidinosos, viva a pornografia, viva o cinismo, viva o camarão, viva toda a gente menos os comunistas… Vivam os cintos de castidade, vivam os conservadores que não lavam os pés ideológicos há quinhentos anos… Vivam os piolhos das populações miseráveis, viva a força comum gratuita, viva o anarco-capitalismo, viva Rilke, viva André Gide com o seu coribantismo, viva qualquer misticismo… Tudo está bem… Todos são heróicos… Todos os jornais devem publicar-se… Todos devem publicar-se, menos os comunistas… Todos os políticos devem entrar em São Domingos sem algemas… Todos devem festejar a morte do sanguinário Trujillo, menos os que mais duramente o combateram… Viva o Carnaval, os derradeiros dias do Carnaval… Há disfarces para todos… Disfarces de idealistas cristãos, disfarces de extrema-esquerda, disfarces de damas beneficentes e de matronas caritativas… Mas, cuidado, não deixem entrar os comunistas…
Retrato do Artista em Cão Jovem
Com o focinho entre dois olhos muito grandes
por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentosaqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra
Desejos em Função das Necessidades
O desejo tem mais fantasia do que a inclinação, e nem sempre ocorre segundo a necessidade. Pode-se desejar uma coisa da qual não se tem experiência. Por isso não existe limite aos desejos que os inventores nos possam dar, como o avião, o rádio, a televisão, ir à lua, etc. Deseja-se o novo. A sensatez exige que estabeleçamos os nossos desejos a partir das nossas necessidades e mesmo (afinal, adquirem-se necessidades) a partir do nível médio dos homens.
O mal romântico é este: querer a lua como se houvesse maneira de a obter.
Mater Dolorosa
Quando se fez ao largo a nave escura,
na praia essa mulher ficou chorando,
no doloroso aspecto figurando
a lacrimosa estátua da amargura.Dos céus a curva era tranquila e pura;
Das gementes alcíones o bando
Via-se ao longe, em círculos, voando
Dos mares sobre a cérula planura.Nas ondas se atufara o Sol radioso,
E Lua sucedera, astro mavioso,
De alvor banhando os alcantis das fragas…E aquela pobre mãe, não dando conta
Que o sol morrera, e que o luar desponta,
A vista embebe na amplidão das vagas…
Para Voltar
A ver-te
Um só instante,
A ti,
Que és mais bela que a lua,
Antes que a manhã recolha
As estrelas
Uma a uma
E as guarde
Do outro lado do céu,Vou atravessar
O rio
Coberto de holofotes,
Que transformam o verde claro
Numa fosforescência
De água assustada.Se não me matarem
Nem me apanharem vivo,
Mantém-te alerta
Mantém alerta
O desejo mais antigo
e o mais novo.Vou passar
Do lado de fora
Da parede
Perfurada
Pelas balas:Passa-me um lenço
De seda
Com o teu perfume.Marca-o com o segredo
Dos teus lábios.