A estrada do monte
Não digas nada a ninguém
que eu ando no mundo triste
a minha amada, que eu mais gostava,
dançou, deixou-me da mão;
Eu a dizer-lhe que queria
ela a dizer-me que nĂŁo
e a passarada
nĂŁo se calava
cantando esta cançãoSim, foi na estrada do monte
perdi o teu grande amor
Sim ali ao pé da fonte
perdi o teu grande amorAi que tristeza que eu sinto
fiquei no mundo tĂŁo sĂł
e aquela fonte, ficou marcada
com tanto que se chorou
Se alguém aqui nunca teve
uma razĂŁo para chorar
siga essa estrada
nĂŁo diga nada
que eu fico aqui a chorarSim, foi na estrada do monte
perdi o teu grande amor
Sim ali ao pé da fonte
perdi o teu grande amor
Passagens sobre Montes
227 resultadosÉ necessário ter o coração colocado alto para derramar certas lágrimas; a nascente dos grandes rios encontra-se no cume dos montes que avizinham o céu.
Deste Modo ou daquele Modo
Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou nĂŁo calha.
Podendo Ă s vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever nĂŁo fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E nĂŁo precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento sĂł muito devagar atravessa o rio a
nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me
ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, nĂŁo Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer
como um homem,
Mas como quem sente a Natureza,
De monte a monta…
De monte a monta, o meu grito
soa, soa, como voz
de um eco do infinito
ecoando em todos nĂłs.Timor cresce como um grito
ecoando em todos nĂłs.
Pastor do Monte, TĂŁo Longe de Mim
Pastor do monte, tĂŁo longe de mim com as tuas ovelhas
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
NĂŁo, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence sĂł Ă felicidade e Ă paz.
Nem tu a tens, porque nĂŁo sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela Ă© ela sĂł, e cai sobre nĂłs como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca. e eu sĂł penso no sol.
Os Dias Conto, e cada Hora, e Momento
Os dias conto, e cada hora, e momento
qu’ alongando-me vou dos meus amores.
Nas árvores, nas pedras, ervas, flores,
parece que acho mágoa, e sentimento.As aves que no ar voam, o sol, e o vento,
montes, rios, e gados, e pastores,
as estradas, e os campos, mostram as dores
da minha saudade, e apartamento.E quanto m’era lá doce, e suave,
mais triste, e duro Amor cá mo apresenta,
a que entreguei da minha vida a chave.Em lágrimas força Ă© qu’ as faces lave,
ou que nĂŁo sinta a dor que na tormenta
memória da bonança faz mais grave.
Profecia
Nem me disseram ainda
para o que vim.
Se logro ou verdade,
se filho amado ou rejeitado.
Mas sei
que quando cheguei
os meus olhos viram tudo
e tontos de gula ou espanto
renegaram tudo
— e no meu sangue veias se abriram
noutro sangue…
A ele obedeço,
sempre,
a esse incitamento mudo.
Também sei
que hei-de perecer, exangue,
de excesso de desejar;
mas sinto,
sempre,
que nĂŁo posso recuar.Hei-de ir contigo
bebendo fel, sorvendo pragas,
ultrajado e temido,
abandonado aos corvos,
com o pus dos bolores
e o fogo das lavas.
Hei-de assustar os rebanhos dos montes
ser bandoleiro de estradas.
— Negro fado, feia sina,
mas nĂŁo sei trocar a minha sorte!NĂŁo venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
Ă minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
— eu sei.
Mas nĂŁo quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
NĂŁo importa lá chegar…
Eu Gosto da Paisagem
Eu gosto da paisagem. Mas amo-a duma maneira casta, comovida, sem poder macular a sua intimidade em descrições a vintĂ©m por palavra. Chego a uma terra e nĂŁo resisto: tenho de me meter pelos campos fora, pelas serras, pelos montes, saber das culturas, beber o vinho e provar o pĂŁo. E quando anoitece volto, como agora, cheio do enigma que fez cada regiĂŁo do seu feitio, tal e qual como pĂ´s nas costas do dromedário aquela incrĂvel marreca, e no pescoço do leĂŁo aquela fantástica juba.
Quotidiano (ReflexĂŁo)
Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar:
uma enxada para que as mĂŁos nĂŁo toquem na terra,
um ninho de pardais no canto da relha,
para que um ruĂdo de asas se possa abrigar,
um pedaço de verde no monte que ainda vejo,
por detrás dos prédios que invadem tudo.Mas se estas coisas estivessem aqui,
também faria falta um copo de água para ver,
através do vidro, um horizonte desfocado;
e ainda os restos de madeira com que,
no inverno, é costume atiçar o fogo
e a imaginação que ele consome.Como se tudo estivesse no lugar,
pronto para ser usado na data prevista,
sento-me Ă janela, e fixo a Ăşnica coisa
que nĂŁo se move:
o gato, hipnotizado por um olhar
que sĂł ele pressente.
VIII
Este Ă© o rio, a montanha Ă© esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
SĂŁo estes inda os mesmos arvoredos;
Esta Ă© a mesma rĂşstica floresta.Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavĂssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruĂdo
Vem as mortas espécies despertando.
O EspĂrito em Transe
O prazer profundo, inefável, que Ă© andar por estes campos desertos e varridos pela ventania, subir uma encosta difĂcil e olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir directamente na pele a agitação furiosa do ar, e depois compreender que nĂŁo se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chĂŁo, estremecem, as nuvens roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se em direcção ao mar, e o espĂrito entra numa espĂ©cie de transe, cresce, dilata-se, nĂŁo tarda que estale de felicidade.
Fado PortuguĂŞs
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.Ai, que lindeza tamanha,
meu chĂŁo , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vĂŞ se vĂŞs terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.MĂŁe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo Ă sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
Ă proa de outro velero
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Nada Nos Falta, porque Nada Somos
Ao longe os montes tĂŞm neve ao sol,
Mas é suave já o frio calmo
Que alisa e agudece
Os dardos do sol alto.Hoje, Neera, nĂŁo nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos.
NĂŁo esperamos nada
E temos frio ao sol.Mas tal como Ă©, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece.
Teoria da Presença de Deus
Somos seres olhados
Quando os nossos braços ensaiarem um gesto
fora do dia-a-dia ou nĂŁo seguirem
a marca deixada pelas rodas dos carros
ao longo da vereda marginada de choupos
na manhĂŁ inocente ou na complexa tarde
repetiremos para nĂłs prĂłprios
que somos seres olhadosE haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo
E onde quer que estejamos será sempre um terraço
a meia altura
com os ao longe por muito tempo estudados
perfis do monte mário ou de qualquer outro monte
o melhor sĂtio para saber qualquer coisa da vida
Soneto de um Céptico
Febo há muito desceu no Ocidente
Por trás dos montes de rosa tingidos;
Eu, sofrendo, cerro os olhos doridos
Olhando o mundo que ante mim se estende.Pois pela noite o rio silente desce,
Oculto no escuro já voa o morcego;
Mas, nocturna, a alma nĂŁo tem sossego,
É na escuridão que meu horror cresce.Odeio a noite que a mim se assemelha,
SĂł que em mim, nem astro ou centelha
Dispersa as nuvens da alma e da mente.Mas como a noite em seu manto sombrio,
Calado e escondido me quedo no frio,
Envolto em dĂşvidas e delas temente.
Eu conheço bem a fonte que desce daquele monte ainda que seja de noite ainda que seja de noite porque ainda Ă© de noite no dia claro dessa noite…
A uma Rapariga
Ă€ Nice
Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mĂŁos preciosas de menina.Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!Trata por tu a mais longĂnqua estrela,
Escava com as mĂŁos a prĂłpria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir Ă luz a haste duma flor!…
LXXXIII
Polir na guerra o bárbaro gentio,
Que as leis quase ignorou da natureza,
Romper de altos penhascos a rudeza,
Desentranhar o monte, abrir o rio;Esta a virtude, a glória, o esforço, o brio
Do Russiano HerĂłi, esta a grandeza,
Que igualou de Alexandre a fortaleza,
Que venceu as desgraças de Dario:Mas se a lei do heroĂsmo se procura,
Se da virtude o espĂrito se atende,
Outra idéia, outra máxima o segura:Lá vive, onde no ferro não se acende;
Vive na paz dos povos, na brandura:
VĂłs a ensinais, Ăł Rei; em vĂłs se aprende.
Que Pesa o EscrĂşpulo do Pensamento?
Azuis os montes que estĂŁo longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Nada quero.
Que pesa o escrĂşpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vário, e como eles,
Exterior a mim, me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às férias em que existo.
O Céu, de Opacas Sombras Abafado
O céu, de opacas sombras abafado,
Tornando mais medonha a noite fea,
Mugindo sobre as rochas, que saltea,
O mar, em crespos montes levantado;Desfeito em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta area;
O pássaro nocturno, que vozea
No agoireiro cipreste alĂ©m pousado;Formam quadro terrĂvel, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato Ă fereza
Do ciĂşme e saudade, a que ando afeito.Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
Há mais escuridade, há mais tristeza.